Curitiba — Se o primeiro dia foi de reflexão, o segundo dia do Correio no Festival de Curitiba foi de constatação e choques de realidade. Com duas peças que escancaram a realidade da população negra no Brasil. O espaço foi aberto para linguagens diferentes e metáforas pertinentes sobre o racismo entranhado na cultura e sociedade brasileira.
O evento foi coerente com o tema de “festival para todos” e demonstra estar ciente do que o Correio Braziliense precisa ser discutido pelo público, que veio de todo o Brasil para lotar os teatros da capital paranaense. O Correio passa as impressões dos dois espetáculos que pôde acompanhar nesse sábado (1/4).
A voz dos sem voz
Um ator em uma luta de 7 rounds contra o racismo estrutural da sociedade. Esta é a premissa da peça O grande dia, idealizada e atuado por Reinaldo Junior. O espetáculo, apresentado na Casa Hoffman nesse sábado, é uma crítica dura e direta para como a sociedade trata o homem negro e quais situações inexplicáveis grandes nomes do movimento se viram obrigados a viver.
O artista vive sete personagens, em sete cidades diferentes. Diversas lutas são apresentadas em um monólogo intenso que mistura a corporeidade com um texto denso e bastante explicativo e videos criados por Giulia Santos. Uma peça com caráter cinematográfico em que o ator ocupa todo o espaço que tem direito.
O mais interessante, no entanto, é ver como a mensagem da peça é universal. Como uma história de injustiça com um negro norte-americano como foi Mohammed Ali não destoa tanto da trajetória do próprio Reinaldo, nascido e criado em Mesquita no Rio de Janeiro.
Essa luta incessante é uma forma muito boa e metafórica de explicar o que é visto no dia a dia. A apresentação é como se o ator estivesse desenhando o que para ele é óbvio, mas na sociedade está internalizado. O racismo é injusto, mata, faz mal para mais da metade da população brasileira. O Festival de Curitiba dá palco para um pequeno passo em direção a fuga desse tema tão complexo.
Frutos do medo
A história de quatro escravos em uma fazenda serve de potente metáfora para o medo da população negra do Brasil em Desfazenda — Me Enterrem Fora Desse Lugar. Os quatro personagens, que se chamam pelos números 12, 13, 23 e 40 questionam o próprio cotidiano em uma fazenda em que trabalham gratuitamente e não tem o direito de sair.
Com elenco formado por Ailton Barros, Filipe Celestino, Jhonny Salaberg e Marina Esteves, a peça, escrita por Lucas Moura e dirigida por Roberta Estrela D’Alva, usa de um formato experimental que flerta desde as batalhas de rap até o teatro musical para uma contação de histórias atuada. Uma mescla de movimento corporal e potência de discurso faz de todas as ações em cena muito impactantes.
A metáfora de uma vida cercada e cheia de medos, até a citação da planta favela, que da o nome popular aos locais brasileiros, tudo na peça é pensado para fazer pensar. A mensagem é clara e, assim como a de O Grande Dia, fala sobre liberdade e o lugar do negro no mundo. Os diálogos não são fáceis e a tensão é muito alta desde o primeiro momento. Uma peça que incomoda para passar a mensagem, que também é incomoda.
Em um Brasil com casos de trabalho analogo a escravidão recentes, Desfazenda é quase que um grito de socorro, um espetáculo que toca onde dói e que não pede desculpa por isso. A peça tem a dramaturgia talvez um tanto previsível, mas que conduz o público de forma competente para a emoção. Necessário e doloroso.
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