O austríaco Thomas Ender chegou ao Brasil quando tinha 22 anos e produziu um dos mais importantes acervos de imagens sobre o país no século 19. Apesar disso, ele é muito menos conhecido ou comentado do que as dos desenhistas viajantes Debret e Rugendas. Agora, pela primeira vez, a valiosa produção iconográfica de Ender ganha uma edição à altura de sua relevância. Ender e o Brasil — Obra completa (Ed. Capivara) reúne 300 desenhos inéditos e mais 700 abrigados na Academia de Belas Artes de Viena. A pesquisa titânica foi coordenada por Júlio Bandeira. Em entrevista ao Correio, ele fala sobre a relevância das imagens de Ender para a história brasileira.
Entrevista com Julio Bandeira
Quem era Ender e por que ele foi muito menos comentado do que Debret, Rugendas e outros paisagistas que visitaram o Brasil?
Thomas Ender era um artista formado na Escola Biedermeier de paisagem cujo objetivo era a representação o mais realista possível da paisagem. Um pintor de origem humilde, seu pai era dono de um ferro velho em Viena e, quando adolescente, Ender pagava suas aulas de pintura tocando violino em cafés.
Pode parecer extraordinário, mas aos contrário dos dois outros grandes artistas viajantes a visitarem o Brasil no primeiro quartel do século 19, Jean-Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas, passados mais de duzentos anos, a obra de Thomas Ender, ainda não tinha sido inteiramente publicada. Seja nas mais de 300 obras inéditas, seja nas mais de 700 guardadas na Academia de Belas Artes de Viena, o conjunto da sua obra revela o quão o conhecimento de nosso passado ainda reserva surpresas. Suas aquarelas e desenhos são o único conjunto a retratar em série o Brasil quando o Rio de Janeiro era a Capital do Reino Unido de Portugal e do Brasil, além de sede do império português.
Qual a relevância desse conjunto de imagens desenhados por Ender?
Com Ender, se desfaz uma inacreditável ignorância daquilo que fomos, de um cotidiano desaparecido. De forma que, apesar de ser o artista viajante cuja obra rivaliza com a produção brasileira de Debret e Rugendas, ficamos mais de século sem conhecer a viagem pitoresca ao Brasil de Ender. Isso não impediu ele continuasse, talvez exatamente por isso, a produzir imagens brasileiras a partir de seus rascunhos durante muitos anos após seu retorno à Europa que estavam até agora inéditos. Para tanto, foi de grande importância a redescoberta de uma peça publicitária publicada em 1955 pela Livraria Kosmos como calendário permitiu a descoberta de 12 aquarelas, parte de um conjunto com quase 30 aquarelas elaboradas, muitas assinadas, em sua maioria pintadas por Ender após seu retorno à Europa.
Como situa essa edição dos desenhos de Ender no Brasil? Por que ele demorou tanto a merecer uma edição alentada à altura de sua importância?
Ender não teve, como Debret e Rugendas, que publicaram suas viagens pitorescas respectivamente em 1834 e 1835, a oportunidade de publicar um livro com as imagens de sua viagem ao Brasil, elas só começariam a ser estudadas por brasileiros na segunda metade do século 20.
A única obra "editada" por Ender foi seu Álbum de Viagem, adquirido em Viena para o Brasil pela Biblioteca Nacional, pouco antes da II Guerra por intermédio da Livraria Kosmos do Rio de Janeiro às vésperas da anexação da Áustria pela Alemanha Nazista, o Anschluss de 1938. Talvez pela associação do "Álbum" com a guerra, talvez pelo desconhecimento prévio sobre Thomas Ender, foi preciso que a descoberta desse artista viajante, cuja obra rivaliza com a de Debret e Rugendas, se desse a partir do material vendido em 1955 e divulgado em calendário daquele ano por Gilberto Ferrez. Foi Ferrez quem publicou as duas primeiras edições coloridas de Ender, em 1957 e 1976.
Das 300 imagens do Álbum do acervo da Biblioteca Nacional, apenas oito foram reproduzidas em preto e branco, publicadas em 1968 num pequeno catálogo com a relação das obras. O restante está sendo publicado pela primeira vez nesse raisonné. Foi um privilégio poder me juntar a historiadores da arte de escol com Ferrez e Dona Lygia Cunha, é extraordinário ter podido encontrar três centenas de obras inéditas de uma artista viajante da importância de Ender.
O que caracteriza o registro que Ender fez da paisagem e dos costumes brasileiros em relação a outros desenhistas viajantes que visitaram o Brasil?
Ao contrário de Debret, um pintor neoclássico, responsável pelos cenários do então Teatro São João, que chegou ao Brasil com o dobro da sua idade, Ender buscava o registro integral das paisagens urbanas e rurais. Ao retratar o Rio de Janeiro e São Paulo, cujo roteiro que fez até a capital paulista seria o mesmo percorrido por Dom Pedro menos de cinco anos depois — na viagem da Independência de 1822 — Ender pinta e desenha os detalhes de tudo aquilo que via. Para Debret, as figuras eram em geral mais valiosas que a paisagem, eram os tipos que importavam mais que as cidades. Enquanto Rugendas buscava a emoção romântica, reinventando paisagens e figuras, em uma pintura carregada de sensualidade.
E qual a relação dele com a natureza brasileira?
Ender foi, em suas paisagens naturais, também um dos pioneiros na associação entre arte e botânica, ele já percebia a importância da natureza brasileiros enquanto objeto a ser retratado. A sua proximidade com os naturalistas bávaros Spix e Martius é notória, a tal ponto que muitos cometeram o engano de que Ender fora contratado como ilustrador para a expedição dos dois cientistas. Esse engano é compreensível visto que Ender colaborou com duas gravuras nas ilustrações do Viagem ao Brasil de Spix e Martius e 11 das litografias ilustram o livro Tabulae Physiognomicae Brasiliae, primeiro volume da Flora Brasiliensis, uma coleção científica dirigida por Carl Friedrich Philipp von Martius. Além disso, foi a partir de Ender que foram feitas as seis magníficas águas-fortes de Viagem ao interior do Brasil, obra em dois volumes escrita pelo botânico e geólogo Johann Baptist Emanuel Pohl, em cuja companhia também viajara ao Brasil. Pohl foi nomeado em 1821 diretor e curador do Imperial Museu do Brasil em de Viena, posição que conservaria até o final da vida 1834.
A iconografia passou a ser uma fonte muito importante para os estudos de história. Qual a relevância da reunião dos desenhos de Ender para a história brasileira?
É preciso dizer que América portuguesa era, segundo Rubens Borba de Moraes, um dos territórios mais desconhecidos em todo Mundo, chegando a comparar o Brasil ao Tibete. Com a abertura dos portos, o Rio de Janeiro iria receber uma sucessão impressionante de artistas, sendo os primeiros pintores amadores, como o tenente inglês Henry Chamberlain, filho do cônsul inglês, e o príncipe alemão Maximilian zu Wied-Neuwied. Thomas Ender e Jean Baptiste-Debret foram os primeiros artistas profissionais a desembarcar, respectivamente em 1816 e 1817, na então capital do recém-criado Reino Unido de Portugal e do Brasil, e Algarves. Mas ao contrário do artista francês de quase 50 anos formado nos cânones rigorosos do Neoclassismo, ex-aluno de Jacques-Louis David, Ender desembarcou aos 24 anos em busca de uma paisagem novel. Debret era um "pintor de história", um professor que, além de ensinar sua pintura na futura Academia de Belas Artes, trabalhou como cenógrafo do Real Teatro São João, rebatizado sucessivamente de São Pedro até chegar ao nome atual de João Caetano. Já Ender seria o mais fiel dos artistas viajantes, focando sua arte nas ruas e na natureza luminosas.
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