Nós sabemos pouco sobre os critérios dos algoritmos que orientam o funcionamento das big techs. Mas, em compensação, as máquinas sabem quase tudo sobre nós. No momento em que digito a matéria, o algoritmo é capaz de de antecipar o que irei escrever. Em novo livro, Incerteza, um ensaio – como pensamos a ideia que nos desorienta (e orienta o mundo digital), publicado pela editora Autêntica, Eugênio Bucci, professor da USP e um dos mais importantes teóricos brasileiros da comunicação, propõe uma reflexão sobre como o controle sobre o comportamento humano se transformou no maior capital das big techs. Nesta entrevista ao Correio, que integra a série Impactos das redes, Bucci fala sobre o jogo das big techs com os usuários, as ameaças à democracia, a ideologia do algoritmo, a fabricação da ignorância pelas redes sociais e a imperiosa necessidade de regulação das corporações digitais.
Entrevista: Eugênio Bucci
Como é que se dá o jogo da incerteza entre as big techs e os usuários e quais as consequências desse jogo, que você trata novo livro?
A incerteza é um tema tão antigo quando o discernimento. O que não sabemos nos é incerto, e o que é incerto nos desconcerta. A gente fica sem saber como reagir, o que fazer, para onde ir. No amor, a incerteza nos dilacera o coração, como a gente registra no cancioneiro popular. A pessoa amada nos deseja de verdade? Ela nos trai? Ela tem mesmo a decisão de ficar ao nosso lado? Tudo isso nos desorienta e nos faz sofrer, e não é de hoje. Mas, na era digital, isso mudou. Agora, nós, supostamente humanos, continuamos com nossas hesitações, nossas indecisões, nossos pontos cegos, mas as máquinas, os algoritmos, as teias planetárias de computadores interligados, esse imenso mundo digital parece saber muito mais do que nós sobre nós mesmos. Isso é uma novidade. Para dizer a verdade, isso é uma novidade espantosa. Você começa a digitar uma palavra no Whatsapp e o celular já completa a palavra inteira, prontinha. A máquina sabe antes o que você pensou em escrever. E isso é fichinha. Os bancos de dados sabem muito mais. Cruzam nossos exames médicos, nossas operações de compra no cartão de crédito, nossos destinos na cidade – para as máquinas, nós somos bichos previsíveis. E esse é um ponto de partida, muito perturbador. A incerteza ainda nos atormenta, sobretudo a incerteza sobre as máquinas digitais. Nós não sabemos, por exemplo, como elas extraem nossos dados e como elas transformam esses dados em bilhões e bilhões de dólares. Por outro lado, as máquinas têm margens reduzidas de incertezas sobre quem somos, o que desejamos, o que tememos. Essa assimetria, esse desequilíbrio de informação, e de incertezas, nunca foi tão grave como agora.
Quais as ameaças que as big techs representam para a democracia? O que elas destroem que é fundamental para a sobrevivência dos regimes democráticos?
Do jeito que as coisas estão postas hoje, as big techs desorganizam as bases que possibilitam o funcionamento saudável da esfera pública. Sei que estou usando palavras um pouco cifradas aqui. É um cacoete de professor e pesquisador universitário. Vou tentar explicar um pouco melhor. Essas chamadas big techs são hoje conglomerados com um valor de mercado que se mede em trilhões de dólares. Isso mesmo: elas, cada uma delas, valem alguns trilhões de dólares. Elas têm mais poderio econômico que muitos estados nacionais, que muitos países pequenos. Ao mesmo tempo, elas exercem um monopólio global nas suas áreas. Quem é o concorrente da Amazon? O Magazine Luiza? Ora, por favor. Quem é o concorrente do Google? A biblioteca do Senado Federal? Quem é o concorrente da Meta, que é dona do Facebook e do Whatsapp? Isso sem falar nas gigantes que chegam da China, como o Tiktok. Os algoritmos dessas companhias definem o fluxo das informações que circulam no debate público. Com que critérios? A gente não sabe. Com quais impulsionamentos? Não está claro. A serviço de quem? De quais interesses? Aí está a grande ameaça. Há um poder econômico numa dimensão que nunca foi vista, presente no mundo todo, que exerce uma influência implacável sobre o debate público e fica fora do controle das instituições democráticas. A partir daí, o desafio é óbvio: ou a democracia consegue estabelecer parâmetros legítimos e transparentes para regular esses monstros digitais, ou eles, sem perder um segundo, controlarão a democracia.
O algoritmo é de extrema direita? Ou, talvez, o algoritmo tem uma arquitetura do ódio?
Não é que o algoritmo, ou os algoritmos, no plural, sejam de extrema direita. O que acontece é que ficou demonstrado que existe uma simbiose orgânica, natural, e uma identidade total entre o funcionamento das plataformas que alicerçam as redes sociais e os ideários que fazem a apologia de uma extrema direita antidemocrática. Parecem seres nascidos um para o outro. Uma das explicações para esse fenômeno é que a comunicação nas redes tem apoio forte em processos emocionais, em comportamentos pulsionais e em identificações libidinais. O que conta são as sensações, os prazeres, o gozo. A circulação das memes não tem escalas no pensamento, na reflexão, a construção de argumentos – são puro frenesi irracional, ou quase irracional. Esse fundamento para a comunicação, não por acaso, foi exaustivamente explorado pelos modelos autoritários do fascismo e pela violência estatal do nazismo. A massa não é convocada para pensar, mas para se deixar levar. O que vale é a idolatria. Toda crítica fica proscrita. O ato de pensar vira “coisa de comunista”. Estamos vivendo algo desse tipo. As forças da extrema direita antidemocrática se saem melhor nas redes do mundo digital não porque tenham mais competência técnica, mas porque o território lhes é mais favorável, quase que por natureza.
Como se explica que, com o império das redes sociais, advogados sejam contra o Estado de Direito, professores sejam contra a educação, jornalistas sejam contra os fatos, magistrados sejam contra a justiça e militares sejam contra a pátria? Que milagre explica a transformação tão radical?
Sim, olhando à nossa volta, a gente tem a impressão de estar em meio a um enlouquecimento coletivo, um delírio do organismo. Uma certa histeria parece ganhar corpo, como naquela criatura do Dr. Frankenstein, no romance de Mary Shelley. Faltou o exemplo dos médicos, um amontoado de médicos, que eram contra a razão científica e que, durante o período mais difícil da pandemia, defendiam o uso de medicamentos sem nenhuma comprovação de eficácia para iludir a população desprotegida. Tudo fica mesmo de pernas para o ar. A dinâmica das redes instaura um humor alterado que se precipita na direção de uma ilusão truculenta, segundo a qual o extermínio do adversário é um atalho seguro para a paz social. O ódio triunfa. A força física passa a ser cultuada como uma virtude moral. É difícil. Realmente é difícil.
O que você quer dizer quando afirma que as redes sociais fabricam a ignorância? Qual a diferença desse tipo de ignorância para o desconhecimento ou o obscurantismo tradicionais?
Existe uma ignorância, vamos chamá-la assim, que é “clássica”. Fica entre aspas. Essa é aquela ignorância de que Platão falava, aquela que conhecemos há muito tempo. Ela resulta da passividade, do comodismo, da falta de determinação interior da pessoa para enfrentar suas próprias dúvidas e sair em busca de respostas. Essa ignorância pode ser vencida se temos vontade, se buscamos ativamente o saber, e se nos preocupamos em universalizar a educação e os espaços de vivência cultural. Agora, no entanto, há um outro tipo de ignorância, aquela que é fabricada e que conta com a adesão das multidões. É um tipo de ignorância que dá muito trabalho para ser sintetizada. É uma ignorância passional. Uma paixão. Estamos falando da ignorância que se afirma como fanatismo. É com essa que estamos lidando agora. Para completar, os proprietários monopolistas das tecnologias digitais conseguiram se cercar de paredes opacas, e assim escapam ao exame crítico que poderia vir do público mais atento e das instituições democráticas. Esses muros espessos de opacidade completam a fabricação da ignorância do nosso tempo. Ela impera como uma peste para a qual não se conhece a cura.
Como o processo de bombardeio de fake news afetou o jornalismo?
De muitas maneiras. Uma delas, que eu gostaria de expor rapidamente, é que a desinformação criou um ambiente. Mais ainda: a desinformação é mais um ambiente do que um conteúdo. Nesse ambiente, as diferenças entre “juízo de valor” e “juízo de fato” simplesmente somem. As pessoas não conseguem distinguir uma opinião de um fato. O que uma atriz de televisão afirma sobre a felicidade conjugal tem o mesmo peso do que um filósofo diz sobre a implosão da ética. Uma crença goza da mesma credibilidade que uma verificação criteriosa dos acontecimentos. Pior do que isso: uma opinião absurda passa a ter o mesmo estatuto que uma opinião com fundamento. Assim, um agitador de redes sociais pode afirmar que o aquecimento global é uma ficção, e isso será recebido da mesma forma que uma propaganda do terraplanismo ou a tese de que o Palmeiras tem mundial. Nesse ambiente, verdade e mentira se confundem, se indistinguem. O efeito devastador que isso tem sobre o jornalismo não poderia ser outro. Num mundo em que as massas não nutrem nenhum respeito pelos fatos e pela verificação dos fatos, a imprensa vai perdendo seu lugar e qualquer alucinação poderá ser idolatrada como iluminação universal.
Como vê o argumento de liberdade de expressão para defender as fake news?
Vejo como uma forma de fake news em si mesma. É claro que temos a liberdade de dizer bobagem. Temos a liberdade de proferir críticas ácidas, que outros poderão considerar ofensivas. Temos a liberdade até mesmo para mentir. Em muitas circunstâncias. O princípio da liberdade de expressão, no entanto, nasceu junto com o princípio de que cada um responderá pelos abusos que cometer. Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, da época da Revolução Francesa, afirma isso em seu artigo 11º. Ocorre que nós não temos a liberdade de pregar pela cassação da liberdade de todos os demais. Não temos – nem devemos ter – a liberdade de propagar o ódio racial e de fomentar crimes violentos de racismo. Imagine alguém invocar a liberdade para fazer a apologia da criação de um partido escravocrata no Brasil. Seria um absurdo e uma afronta. Não existe, na tradição democrática, em nenhuma parte do mundo, a liberdade para exterminar a liberdade do outro. Nesse sentido, reivindicar liberdade para destruir a democracia e os direitos fundamentais é uma fake news em si mesma.
O que fazer, concretamente, para conter os efeitos nocivos do bombardeio de notícias falsas veiculado pelas redes sociais? Qual a responsabilidade dos governos, dos parlamentos, do jornalismo e dos sistemas de educação?
Só há um caminho: a regulação. É claro que a educação midiática também ajuda. É claro que a imprensa crítica pode exercer um papel vital. É claro que o fortalecimento da ciência e da universidade não pode ser negligenciado. Mas, se não houver regulação, as democracias vão se desfazer. Que ninguém tenha dúvida quanto a isso. E, quando falo em regulação, eu me refiro ao controle, por exemplo, que a União Europeia vem procurando impor às big techs, como agora mesmo, quando multou a empresa Meta em 1,2 bilhão de euros por contrabandear dados dos cidadãos europeus para os Estados Unidos. Essa batalha será longa e difícil, mas a regulação democrática é o único caminho. No Brasil, estamos às voltas com a tramitação do PL 2630, o projeto de lei para regular as plataformas, conhecido como o “PL das Fake News”. É uma pauta fundamental nessa agenda. A regulação da Inteligência Artificial, que está na pauta das democracias do mundo todo, é outra frente que não pode ser esquecida. A resposta, enfim, para essa pergunta, é regulação. Não há outra palavra.
Mas o que mais podemos fazer além de regular as big techs?
Como eu disse, a educação mediática tem um lugar de destaque em estratégias complementares. Eu tive a honra de escrever, recentemente, a orelha da edição brasileira do livro de David Buckingham, “Manifesto da Educaçâo Midiática”, que foi publicado pela editora do Sesc, em São Paulo. A obra é uma preciosidade. A ação formativa na educação de crianças e adolescentes para ensiná-los e estimulá-los a conviver com as tecnologias digitais que se tornaram a bússola da comunicação contemporânea pode despertar a consciência crítica e dar fundamentação para olhares independentes. Esse trabalho, do qual David Buckingham é um expoente, pode proteger as novas gerações contra a superindústria que dissemina fanatismo e ódio. Eu atribuo enorme relevância à educação midiática.
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