Um festejo cheio de energia ocupa o centro do documentário Máquina do desejo, assinado por Joaquim Castro e Lucas Weglinsky. Um círculo de incontáveis artistas do peso de Antônio Abujamra, Fernanda Montenegro, Leona Cavalli, Etty Fraser, Renato Borghi e Ítala Nandi se faz presente em depoimentos e breves anedotas em torno da vida e obra de Zé Celso Martinez Corrêa (morto há quase um mês), diretor indissociável do Teatro Oficina. Com dimensão equiparada à grega e elizabetana, o projeto físico do Teatro Oficina, edificado por andaimes, aponta um uso orgânico para a troca entre plateia e atrações teatrais assemelhadas a rituais e à explosão do carnaval. Lina Bo Bardi e Edson Elito (os arquitetos atentos à natureza do Oficina) adequaram o espaço a referências e sementes teatrais que, temporariamente, tinham sido censuradas. Resgata-se, no documentário Máquina do desejo, o espírito da arquitetura cênica singular do Oficina, distanciado do Teatro de Arena e do "palquinho de consumo" (numa crítica direta ao propósito do Teatro Brasileiro de Comédia), como dito no filme.
A história de resistência do modelo de teatro nutrido por expressão progressista, e talhado à base de mutirão e cooperação, vibra no documentário. Reverbera o discurso de Zé Celso que, em fins dos anos de 1950, foi norteado pela consciência e a responsabilidade, tudo comprometido com a visão de um artista que, consolidada a ditadura, produziu no exílio. Na perspectiva de que a "revolução era uma criança analfabeta", sem ser didático, Zé Celso tratou de lecionar. Propunha a revisão da história do Brasil, com essência transportada para os palcos. Enquanto o governo queria "reforma", a sociedade almejava a "revolução", enfatiza o discurso do filme. A grandeza de Zé Celso está dimensionada num trecho do documentário em que, preso e torturado (e posto em carne viva), com distância de anos, ele mesmo sentencia sua condição: "Eu ganhei, não cultivei o ressentimento".
Zé Celso provocador
Provocador dos "proletários", Zé Celso cercava-se na criação de jovens "furiosamente" delicados, e todos mergulhavam em montagens embaladas por Gorki, Sartre e Lênin. Em mais de 60 anos de enredo real, pulsante no palco, coube a Zé Celso mobilizar artistas como Dina Sfat, Chico Buarque, José Wilker, Marcelo Drummond, Camila Mota e artistas locais como Tulio Starling e Clarisse Johansson. Brasília (mais precisamente a Torre de TV) dá as caras no filme para personagens das artes indispostos à condição de vítimas ou mártires. Prevalece, em cena, a vocação dionisíaca (em que "todos têm o poder") e, na capital do país, artistas esperneiam (em imagens de arquivo) pela reconstrução do Teatro Oficina, que chegou a ficar fechado por 17 anos. Demolição, reconstrução, tombamento e reforma entram na história dos "palhaços" (artistas) contra "palácios", como o diretor enfatiza, numa alusão ao conglomerado de prédios do império do SBT (empresa contra a qual o dramaturgo travou longa batalha judicial motivada pela disputa de um terreno).
Com relativo "extermínio" de valores da família (como pontuado pela censura, à época da montagem de Gracias, señor), registro contra homofobia (com o exemplo da violenta morte do irmão do artista central do filme), e uma assustadora ligação gráfica com o fogo (em imagens de arquivo), o filme consegue oferecer uma síntese provocadora da trajetória de Zé Celso. O diretor e a ligação de seu universo criativo estimulado por Bertolt Brecht, Oswald de Andrade e Euclides da Cunha estão perfeitamente emoldurados no longa. Máquina do desejo (o filme em exibição) convence no ataque à reles (e oca) burguesia. Noutra frente, de compaixão, enternece ver parte da produção em cinema do Teatro Oficina, com vários filmes sobre independência de países, nos anos de 1970, que resultaram em melhoras de vidas e de libertações como as da escravatura. Evoé!
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