Clayton Nascimento fez uma promessa a si mesmo quando apresentou as primeiras versões de Macacos. Tinham apenas 15 minutos e foram criadas como cenas para uma disciplina na Universidade de São Paulo (USP). Mais tarde, tomaram corpo ao serem apresentadas no Festival de Cenas Curtas. "Me prometi que, se essa peça desse certo, eu viajaria com a montagem de 15 minutos e somaria essas experiências para fazer uma peça longa e voltar a todas as cidades pelas quais passei com o festival", conta o ator e diretor, que desembarca no Cena Contemporânea hoje e amanhã com Macacos.
A peça funcionou tão bem que rendeu a Nascimento um Prêmio Shell e outro da Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA) pela atuação. Um boca-a-boca que passou por gente como Marieta Severo, Renata Sorrah, Zezé Polessa e Camila Pitanga encheu os teatros de São Paulo e do Rio nos quais Macacos esteve em cartaz. Foram sete anos desde as primeiras apresentações — aquelas em sala de aula — sem sair de cena, tempo que o ator também utilizou para experimentar outras linguagens, como a da tevê. Hoje, ele vive Caíto Figueroa Roitman na novela Fuzuê, da Rede Globo.
O Macacos ao qual o público brasiliense assistirá é fruto de uma dramaturgia dinâmica, um compromisso de Nascimento desde o início, quando aceitou a provocação acadêmica para escrever uma cena e escolheu como tema a vida de mulheres pretas famosas. "Foi minha primeira perturbação cênica. Percebi que havia um perfil, que elas eram veneradas enquanto divas e, ao mesmo tempo, condenadas pela sociedade como agressivas, bêbadas, destruidoras de casamentos. E com os homens, a mesma coisa: um artista é venerado e, quando sai na rua, é tratado como bandido", lamenta. As vidas de estrelas como Elza Soares e Bessie Smith inspiraram o ator.
Na mesma época em que começava a elaborar o espetáculo, outro episódio fez Nascimento avançar na proposta. "Um dia chego em casa e encontro um estádio de futebol xingando o jogador Aranha de macaco. Isso me chamou a atenção: como muitas pessoas vão a um estádio e se sentem legitimadas a xingar alguém? Quer dizer que existem mecanismos sociais que permitem que as pessoas façam isso", lembra.
Essas experiências foram somadas a outras vividas pelo próprio Nascimento à medida que viajava com o Festival de Peças Curtas. "A dramaturgia é uma coisa viva, conto histórias de pessoas vivas", avisa o ator. Uma delas é emblemática: um encontro com Tereza Maria de Jesus, mãe do menino Eduardo, morto com uma bala na cabeça enquanto brincava na frente de casa no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, rendeu um dos personagens vividos pelo ator. "Durante o Festival de peças curtas, viajei muito pelo país e, toda vez que chegava em uma cidade, fazia uma pesquisa sobre o impacto da colonização naquele lugar. Fui descobrindo informações Brasil afora, informações que, muitas vezes, a gente não tem em sala de aula", explica.
A pesquisa fez Macacos crescer e se transformar em um monólogo de duas horas e meia. Foram seis anos de experiências constantemente incorporadas ao texto, um tempo que viu o Brasil mudar e o ator se desenvolver. "Passamos por muitos processos políticos que fizeram artistas e professores se verem à margem de toda a sociedade, quase inimigos públicos", lamenta Nascimento, que também enxerga o próprio amadurecimento durante o processo. "Comecei universitário e hoje sou um profissional", lembra.
O Brasil sofreu, mas também amadureceu. "O país passou a falar abertamente a palavra racismo. Hoje, a gente vê muita peça preta, muito monólogo preto, a palavra racismo não assusta mais, a sociedade se abre para falar sobre ela. Estou vivendo um novo debate de pretos, as pessoas falam sobre ser preto, eles são protagonistas de peças, de novelas. Muita coisa mudou", acredita.
Entrevista // Clayton Nascimento
Macacos foi um fenômeno que começou com um boca-a-boca poderoso. O que você acha que aconteceu para as pessoas falarem tanto na peça?
É muito bonito ouvir isso. Ainda ouço essas falas sobre Macacos e penso "meu deus sou eu, é a peça que criei, minha equipe". Eu acredito que o boca-a-boca do teatro é muito poderoso. É muito importante. Mas também é importante dizer que essa peça só conseguiu estrear por causa do edital de pandemia. A gente estava muito recluso de poder consumir arte e, ironicamente, restou aos artistas cuidar da saúde mental da população, porque ficaram a tevê, as séries, as apresentações on-line. E encontrei o público num momento muito propício e também histórico, porque há um desejo contemporâneo de se falar sobre racismo no Brasil e sobre a verdadeira história de construção dessa nação, que não é o senso comum e não vai para os livros didáticos. São fatores que se encontraram.
O que mudou no Brasil nesse período?
Na história do teatro brasileiro, rarissimos monólogos negros foram acolhidos. Mudou o acolhimento do olhar do povo. Há um desejo de conhecer a própria história, a história preta. A gente passou por quatro anos em que artistas, professores, pessoas LGBTQIA e mulheres se tornaram quase antagonistas sociais. Precisou ter uma conscientização coletiva para dar um espaço para esses outros. Vivemos num país em que, desde 1500, há relatos de negros serem mortos por serem negros. Um país em que a comunidade LGBTQIA é assassinada, então chega um governo que oprime, isso gera pressão para que essas pessoas falem. Eu, durante a pandemia, aproveitei para me recolher, estudar e me preparar. Aproveitei os anos dentro de casa para terminar a dramaturgia, para me ensaiar, me dirigir, me filmar, me assistir, me dirigir sem que o tempo fosse meu enorme inimigo.
E como todas essas histórias se unem no palco?
São anos de estudos, de investimento familiar, anos de fé. Não a fé religiosa, e sim a fé que o ser humano é capaz de produzir nem que seja nele mesmo. No palco, é a união de pequenas grandes forças ancestrais históricas sociais para permitir que Macacos aconteça. O que você vê no palco é resultado da fé e da crença de muitos professores num estudante jovem, filho do Nordeste, do Piauí, negro, que muitas vezes não tinha lanche para levar para a aula, mas que sempre teve muito acolhimento das pessoas ao redor. É a coragem de um artista que tem muitos amigos, é o resultado do filho de bolsas de estudo concedidas ao longo dos anos e da formação.
Depois de toda essa preparação muito física e filosófica para fazer Macacos, você está fazendo um personagem de novela na televisão. O que muda?
É bastante diferente. É minha primeira novela, tudo é novidade. Eu pergunto sobre tudo. São coisas muito novas que também preciso aproveitar para aprender, já que sou um pesquisador. E é diferente porque tenho a possibilidade de visitar o povo brasileiro todos os dias, isso é muito raro e especial. Muda também o tamanho da interpretação. Atores de teatro trabalham anos a questão da projeção vocal, das articulações do corpo, da qualidade da fala, da emissão da palavra, que cor e que peso tem cada palavra que você pronuncia. Na tevê é um jogo mais de relação, é um zoom realista. É como se tivesse que mexer nos botões internos do ator que vem de sete anos de Macacos. É um enorme prazer porque, como ator, estou crescendo muito. É algo que quero fazer muito mais porque você se comunica com muito mais pessoas de uma vez.
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