Entre as eternas "crises cíclicas" do cinema nacional, mencionadas por ele no documentário Nelson Pereira dos Santos — Vida de cinema, Nelson, nome singular como precursor de todo o Cinema Novo, pela vida perseverou, até a morte, em 2018. Primeiro cineasta eleito para a Academia Brasileira de Letras, há 17 anos, com excelência narrativa, é ele quem repassa (em concatenado material de arquivo), com riqueza de detalhes, toda a trajetória, neste documentário comandado pela dupla de cineastas Aída Marques e Ivelise Ferreira (essa, com formação em Brasília e na condição de viúva do criador de clássicos como Memórias do cárcere e Como era gostoso o meu francês).
Nos divertidos relatos do mestre, a magnânima obra Rio, 40 graus (1955), que repercutiu na motivação nova para se repensar o cinema no Brasil, é alvo de anedota suprema: "sucesso" na polícia, pelas sucessivas censuras, o filme, segundo ignorante ("como qualquer policial do mundo", como diz Nelson) interlocutor dos governos imediatamente seguidores da era Vargas, foi questionado pela inverdade de pregar 40 graus para uma cidade que, no máximo, chegou ao calor de 39.6º. Na aritmética afetiva de Nelson, feijoada mais roda de samba resultava em cinema. Daí, o longa que mostrava a realidade de cariocas pobres e foi gerido na dinâmica da comunidade do Jacarezinho resultou da vontade de "filar boia" na comunidade e da boa vontade de Humberto Mauro, capaz de emprestar, sem muita burocracia, equipamentos de repartição pública.
O novo filme ainda trata de episódios como o da feitura de O justiceiro (1966), criado com alunos "sem escola" (dado o fechamento de curso da UnB) de Brasília. Sob inspirada música de Tim Recala, o título esmiúça a passagem do jovem Nelson por bairros paulistanos do Brás e Bixiga, no qual desenvolveu a visão de cinéfilo, ainda bebê, no colo da mãe, a cada ida para o Cine Teatro Colombo. Noutra esfera, já com pano de fundo da Guerra do Vietnã, feminismo e drogas, Neslon trata do momento "exílio" (produtivo, em Parati), com Azyllo muito louco (1969), e ainda pelo interesse pela "nouvelle vague mais radical", e underground, orquestrada por Jonas Mekas e afins.
Redator do Jornal do Brasil e com a bagagem de conhecedor da dura realidade do Nordeste, Nelson trata, sem reservas, da criativa fase de feitura de Vidas secas (1963), precedido pelo "rascunho de nordestern (como identificado por Glauber Rocha), no inventivo Mandacaru vermelho (1960). No baú do admirador do artista plástico Carlos Scliar e dos cineastas John Ford, Serguei Eisenstein, além do neorrealista Roberto Rosselini (que deu uma "sacudida na cabeça" de muitos), cabe muito mais da investida na mirada do povo, que tanto o inspirava.
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