Se, com o fenômeno Marilyn Monroe, o pecado morava ao lado, com Brigitte Bardot, ele era seu epicentro. Tão polêmica quanto sedutora, a atriz francesa morreu ontem, em casa, em Saint Tropez, no sul da França. A morte foi anunciada pela Fundação Brigitte Bardot, criada pela atriz em 1986 para lutar pelos direitos dos animais. "A Fundação Brigitte Bardot saúda a memória de uma mulher excepcional que deu tudo e abandonou tudo por um mundo mais respeitoso aos animais. Sua herança resta viva por meio de ações e de combates que a fundação assume com a mesma paixão e a mesma fidelidade aos seus ideais", diz a nota de pesar da instituição.
Para além das performances em 48 filmes, despreocupada com refinamento dramático, Bardot, que empenhou-se ainda em ser cantora, virou as costas para o cinema, numa reclusão cênica, mas que nunca limitou seu impacto e a perenidade de sua presença, como opinativa e polêmica figura pública. Escândalos e dores não faltaram à estrela que, por muitas vezes, tentou suicídio, até mesmo passado o auge da exposição, nos anos de 1990. Ciente do pioneirismo, Bardot, num livro publicado em 2012, é quem sublinha: "Fui a primeira estrela a ser despojada de todo artifício e a aparecer naturalmente (nua)". A subtração de figurinos foi constante, e sempre "desprovida de remorso".
Basta um clássico ...E Deus criou a mulher (1956) para entender a extensão do seu alcance no imaginário erótico coletivo. Nascida para a projeção internacional, passou por 15 tentativas, nas telas, antes de estourar com o longa-metragem do então marido, Roger Vadim. Parte do mito estava esboçado em Manina, a moça sem véu (1952), para o desgosto do pai Louis, burguês, de família católica perturbado pela exposição da moça em biquíni. A estrela que, na telona, esteve na comédia inglesa A noiva do comandante (1955) e chamou a atenção de Vadim ao estampar (numa das 40 vezes) a capa da Elle, ainda menor de idade, balizou com uma sensualidade singular cada frame em que encarou a nudez, chegou a ser descrita como enfant terrible (desprovida de filtros), quando o tema era erotismo. Conceituada como fenômeno, em texto do livro Um filme é um filme (de José Lino Grünewald), Brigitte é dada como uma "celebração do sexo em ebulição, sem qualquer mácula moral ou metafísica".
Junto com discussões sobre ecologia, a rara voz de Bardot se fez ouvida, no cinema, no Festival de Cannes de 2025, quando da exibição na Praia Macé (na Croisette) do documentário Bardot (de Alain Berliner). Na fita franco-belga, a icônica Brigitte Bardot, ativista à toda prova e que sempre defendeu a feminilidade e os animais, aos 90 anos, se desnudou. Na telona, apareceu ao lado de Paul Watson, Claude Lelouch e Naomi Campbell tratando dos predicados de sempre ser vista como musa e dona de ideias radicais, muitas delas expostas na mídia. Na véspera da condenação do colega Gérard Depardieu, em maio de 2025, por crimes de agressão, assédio sexual e insultos sexistas, Bardot não poupou o poder de fogo em controversas declarações de que "homens acusados" de colocar "as mãos na bunda de uma garota" deveriam poder continuar "com suas vidas".
Há quase três meses, em outubro de 2025, a eterna musa destilou a verve crítica, na publicação de Mon BBcédaire, com definições de próprio punho (e caligrafia) do mundo como percebe. Nisso, define a França contemporânea como "sombria, triste, submissa, doente e devastada", entre outros adjetivos. Para colegas de profissão, resta a declaração de amor por Jean-Paul Belmondo e algumas ressalvas aos lendários Alain Delon e Marcello Mastroianni.
Fenômeno no Brasil
Tornada cidadã honorária de Armação dos Búzios (Rio de Janeiro), em que aportou em 1963, ao lado do marroquino Bob Zagury, para um recolhimento que atravessou meses, ela redefiniu a visibilidade do local mundo afora e ganhou uma estátua em sua homenagem, na orla do balneário fluminense.
Agarrada à popularidade, em abril de 1964, em enorme registro da revista Manchete, ela descreveu as "férias magníficas" num passeio no que chamava de "Barrá" da "Tijucá". Na ocasião, contou sobre um apartamento com vista para a Guanabara recém-adquirido e ainda falou do topázio em forma de coração que levava na bagagem, junto com as decoradas marchinhas de carnaval. "Jamais me senti tão à vontade num país estranho", enfatizou.
A riqueza levou a estrela a dar bases sólidas a causas como a luta a favor dos animais vítimas de exploração humana. Com um leilão de joias, em 1978, fortaleceu a fundação de Proteção dos Animais, que havia criado dois anos antes. Exemplar, em muitas batalhas, em 1985, foi reconhecida com a honraria do prêmio da Legião de Honra da França. Numa das declarações mais precisas, foi Bardot quem enunciou: "Eu dei minha beleza e minha juventude aos homens, e agora dou minha sabedoria e minha experiência, o melhor de mim mesma, aos animais". Entre conquistas, ela favoreceu o fim da matança indiscriminada de focas, com direito a endosso pelo Parlamento Europeu.
A estrela, que, afastada das telas, declarou o amor aos homens "sensíveis e carinhosos", despertou o apreço dos dois mais conceituados e revolucionários cineastas franceses: Jean-Luc Godard e François Truffaut. Godard a posicionou como pivô de enorme crise, na pele da personagem Camille Javal, no clássico O desprezo (1963). Na fita, baseada em texto de Alberto Moravia e que contou com o icônico cineasta Fritz Lang (de Metropolis), um produtor hospeda, na Ilha de Capri, o roteirista destacado para reescrever uma adaptação para cinema da Odisseia, de Homero. Mesmo com a decisão de catapultar a estrela Catherine Deneuve para o longa A sereia do Mississippi (1969), preterindo Bardot no elenco, Truffaut não economizou superlativos para a estrela que redefiniu a tonalidade de malícia na telona: "(Com James Dean e Marilyn, Brigitte) é uma simples presença que torna arcaicos quase todos os outros atores", avaliou o consagrado diretor.
No cinema de produção inglesa, esteve ao lado de Sean Connery, em 1968, parceiro criativo em Shalako, faroeste sobre um pistoleiro que faz a admiradora condessa Irina agir como uma deslocada bond girl em meio a apaches norte-americanos. Quase uma década antes, com Babette vai à guerra, ela investiu no estilo aventuresco, num filme ao lado do então marido Jacques Charrier, com quem teve o filho Nicolas, cuja guarda renunciou. À época, os noticiários contaram da depresão e dos distúrbios mentais do jovem de 23 anos que, vindo de uma família de militares, tentou o suicídio em 1960. Jacques Charrier morreria 65 anos depois, em setembro passado, com direito a desavenças públicas em tribunais franceses pelo modo como foi retratado em Iniciais BB, um livro de memórias da musa.
À frente de uma "vida rara", Brigitte Bardot foi uma das pioneiras a rogar, com direito à lei de 1970, pela "vida privada". Isso depois de relatos de sucessivos escândalos junto à exploração de amantes, numa lista engrossada por personalidades como Gilbert Bécaud, Sacha Distel, Samy Frey, Michael Sarne e Serge Gainsbourg. Num impulso de criatividade, o ator Jean-Louis Trintignant, acusado como catalisador de um adultério de BB, cravou: "Eu não a roubei de Roger Vadim (o primeiro marido da musa). Tomei-a emprestada para aperfeiçoá-la". Dado como o primeiro influencer, pré-mundo digital, o artista plástico Andy Warhol, que produziu obras com a imagem de BB negociadas a 10 milhões de euros, destacou o legado sistemático da artista de "comprar e descartar" amantes. A relação mais recente e estável foi com o empresário Bernard d'Ormale, com quem viveu na pequena Saint-Tropez (França), na mítica casa nomeada La Madrague, um cotidiano simples. Tudo muito distinto da badalação que resultou em sucessivos abortos clandestinos. Mesmo entre os ex-maridos, houve paz — Gunther Sachs levou dela a alcunha pública de "ordinário".
Cinco anos antes de declarar voto para a extrema-direita, segundo ela, com a única candidata sensível à denúncia dos rituais metódicos em matadouros, Bardot, em 2007, teve pleitos junto ao presidente Nicolas Sarkozy, em reunião imediata no Palácio do Eliseu. Declarações racistas alimentavam as polêmicas em torno da atriz, que chegou a dizer que os muçulmanos destruíam a cultura francesa. Chegou a ser processada cinco vezes por ódio racial, mas sempre negou as acusações.
Como aliada do governo, em 1974, diante da queda em 10% nas visitas de turistas norte-americanos, Brigitte protagonizou um anúncio pago na televisão convocando viagens.
Lançado há 10 anos no Brasil, um livro de Marie Dominique Lelièvre estabelece BB não como uma atriz, mas como "uma presença", e versa sobre a desinibida estrela que tratava Jacques Chirac ao telefone por "meu Chichi" e que foi capaz de visitar o general Charles De Gaulle paramentada à la Sgt. Pepper, com calça preta e um casaco de uniforme.
Em entrevistas nos últimos 10 anos a jornais como Le Point e Le Monde, Bardot contou que tinha planejado o próprio funeral, Queria ser velada longe da "confusão dos cemitérios" e da "multidão de babacas", no jardim da Madrague, ao lado de seus animais. Na lápide, apenas o nome, as datas de nascimento e morte, e uma cruz simples, em madeira. "Como eu fiz para meus cachorros, meus cavalos, meus carneiros, que encontrarei", disse.
