É possível assistir ao documentário A descoberta do mundo, sobre Clarice Lispector, dirigido por Taciana Oliveira, (em cartaz no Cine Brasília, na EQS 106/107) como quem folheia um álbum de família ou uma fotobiografia em movimento, com a mixagem de linguagens que o cinema propicia e mobiliza. O filme desmistifica a imagem de esfinge inalcançável sobre a escritora. É um filme de Clarice por Clarice.
A voz e o olhar da autora de Água viva ocupam o primeiro plano da narrativa, construída, principalmente, a partir de trechos de crônicas lidos por leitores anônimos ou célebres ou por depoimentos de Clarice de viva voz. "Com todo o perdão da palavra, sou um mistério para mim mesma", diz a escritora em trecho do filme.
O documentário revela que, a par da dimensão insondável, Clarice também era uma mulher simples, capaz das reações mais ternas e maternas: "Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O 'amar os outros' é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra."
Mas ela alerta que o amor poderia se manifestar, algumas vezes, em forma de farpas. Na vida cotidiana, ela era simples; na vida literária, ela era misteriosa. Há histórias pungentes, como narrada sobre o filho aflito, a quem ela afaga. "Se Deus cuida até dos passarinhos por quê não cuidaria de você?"
O filme utiliza depoimentos e documentos, mas escapa da narrativa enfadonha porque o álbum de família interage em uma montagem de choque com as imagens da música das ondas do mar, tão presente na ficção e na vida de Clarice, com as ressonâncias simbólicas do inconsciente, do feminino, do indomável e da eternidade. O que nos empurra para o território da poesia.
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