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Brasil dos invisíveis

Os grandes números da economia e do orçamento federal divulgados na semana passada explicitaram verdades embaraçosas. A queda do Produto Interno Bruto (PIB) no segundo trimestre desnudou aos governantes e à minoria de afortunados a enorme miséria da maioria da população. E a proposta da Lei Orçamentária Anual (LOA) para 2021, submetida pelo governo ao Congresso, mostrou a anemia do gigante maltratado.

Num caso, o massacre social foi evitado pelo pagamento do auxílio emergencial de R$ 600 por cinco meses, estendido em parcelas de R$ 300 de setembro até o fim do ano. Mais de 67 milhões estão na folha excepcional. Ela, literalmente, salvou a economia de uma depressão. No outro caso, o orçamento federal, deficitário desde 2014, se liquefez com os gastos extras da pandemia e não deverá voltar a ter superavit até 2026. Ou mais. E só falamos da parte que abate o ônus da dívida pública. Com ela incluída, superavit vira coisa do além.

A verdade é que o Brasil adocicado da propaganda oficial só existe nos sorrisos de miss do presidente da vez e de seus apaniguados. As mazelas são fortes demais para exibição em horário livre.

No Brasil de ficção dos bem de vida, escândalos são os casos que a Lava-Jato denunciou. No Brasil real da maioria, escandalosa é a sua situação de párias — “invisíveis”, como os rotulou o ministro Paulo Guedes, embora sejam visíveis desde sempre nas pesquisas do IBGE.

Décadas de política econômica concebida sem elo entre a capacidade produtiva, o tamanho e as necessidades da população e a estrutura disfuncional do Estado brasileiro, com órgãos públicos redundantes nos três níveis da federação, geraram um país com poucos empregos e muitas urgências. Foi o que estarreceu o governo ao ver a multidão que apareceu para receber o auxílio emergencial.

Mas já era assim

Antes das medidas acionadas para mitigar o avanço da pandemia, em especial o isolamento social que levou à parada abrupta das fontes de renda de mais de 40 milhões de trabalhadores informais, o grosso da população já contava com algum programa oficial para completar o sustento da família. Nunca houve emprego suficiente para a maioria.

A síntese de nosso drama: 79% da força de trabalho total, ou 76,3 milhões de brasileiros, dependem do Tesouro Nacional para viver.

Mais população do que emprego

Hoje, caminhamos para o pior dos mundos. Não porque o teto imposto ao aumento do gasto público federal (cujo valor orçado em 2016 não pode se expandir além da correção pela inflação de 12 meses) esteja ameaçado pelo desejo do presidente Jair Bolsonaro de se popularizar com o Bolsa Família agigantado e um colar de obras públicas.

O risco é que aumente a dependência dos programas de transferência de renda que servem a maioria da população. Um estudo do economista Gabriel Barros, do BTG Pactual, mostra o vulto do drama.

Ele consolidou os nove principais programas de benefícios sociais (do Bolsa Família ao abono salarial e o seguro-desemprego). Neles há, ao todo, 63,9 milhões de pessoas atendidas, com gasto anual de R$ 263 bilhões — e isso sem incluir o atual auxílio emergencial.

Sem cadastro social unificado e identidade digital única, é enorme a sobreposição entre tais programas (aposentado recebendo seguro desemprego, Bolsa Família paga a aposentado etc.). O problema é sabido há muitos anos. Não se resolve com varreduras periódicas nem com órgãos de controle. É com as ações citadas, que Guedes ignorou.

Fato é que se somarmos à população assistida com programas sociais os 12,4 milhões de funcionários da União, dos estados e municípios, temos 76,3 milhões de brasileiros (63,9 + 12,4) vivendo do Estado.

Os arrimos do caixa público

Os arrimos do caixa público representam 36% da população total de 212 milhões. Ou 44% da população em idade de trabalhar (174 milhões acima de 14 anos). Equivale a 79% da população ocupada, ou força de trabalho, de 96 milhões (73% antes da pandemia, quando 105 milhões tinham alguma atividade remunerada). Ou 142% dos empregos formais.

É óbvio que não há economia que aguente tamanho ônus. Quem tentou, ruiu, como a Índia antes da abertura econômica, a finada URSS, e a China, paupérrima, com eventos de canibalismo, até os anos 1970.

Não é que o problema seja o Estado de bem-estar, longe disso. Está no Estado hipertrofiado para tantas demandas; carente do que possa mitigar os ônus, o que requer investimentos, empresas em expansão e o uso maciço da tecnologia da informação; sem foco no crescimento sustentado; sem estratégia para gerar empregos que não colidam com o viés da produtividade; sem foco na educação profissionalizante, contemplada pelo novo ensino médio, mas ainda não implantado.

Estagnação ou criatividade

A verdade sonegada é que o tempo de reformas gradualistas (tipo a reforma administrativa fatiada, cujos efeitos serão lentos, talvez só daqui a uma década) se esgotou entre os governos Dilma e Temer.
Nosso dinamismo econômico murchou há uma década, e a indústria, há mais de 30 anos. A volta à estagnação é, hoje, um cenário otimista.

A passagem do Orçamento de Guerra de 2020 para a lei orçamentária de 2021, segundo o economista Fernando Montero, vai subtrair gastos primários na economia da ordem de R$ 500 bilhões nominais. “Se o BC e o mercado tivessem pleno convencimento desse cenário da política fiscal, os juros — curtos e longos — já seriam outros”, diz ele.

Mais relevante do que uma reforma administrativa sem efeito imediato sobre a maçaroca de despesas públicas são as sanções previstas pelo descumprimento do teto de gasto. Mas é ilusão supor que isso baste para engordar o Bolsa Família de Bolsonaro.

O país precisa de mais: crescimento movido a investimento e atividades geradoras de emprego decente. Falta criatividade. Quem sabe ela brote se a Selic zerar?