Entre as preocupações causadas pela pandemia da covid-19, as finanças e o endividamento pessoal marcaram 2020. O sentimento é comum e as soluções parecem escassas em um cenário de desemprego enfrentado pelo país. A insegurança chegou ao lar de Everaldo Rock, 65 anos, morador de Taguatinga. As preocupações aumentaram à medida que o dinheiro diminuía, resultando no corte do convênio de saúde. “Dei baixa no plano, este ano, devido ao aumento que teve na mensalidade. Eu não consegui guardar o dinheiro, e o que era usado para isso foi revertido em outras necessidades”, explica.
O aposentado conta que a alimentação foi um dos fatores que pressionaram o corte de gastos, principalmente depois de meses de isolamento, com o filho e a esposa em home office se alimentando em casa. “Não consegui economizar nada, mesmo sendo aposentado. Ainda que com três rendas fixas em casa, as coisas ficaram muito apertadas”, lamenta.
As contas na casa do caldeireiro Claudiomar Pacheco, 34 anos, que teve seu salário reduzido em meio à pandemia, também ficaram atrasadas. “A situação ficou bem crítica. Eu e minha esposa tivemos o salário reduzido, e nosso aluguel tinha aumentado poucos dias antes da quarentena. Depois da redução, ficou difícil manter as contas em dia, manter alimentação e lidar com o aumento das contas que tivemos. Além da inflação dos alimentos, as contas de água e luz também aumentaram, já que estávamos passando mais tempo em casa”, relata.
Morador de Betim, Minas Gerais, Pacheco afirma que precisou negociar com o locatário o valor e o pagamento do aluguel. “Ele retirou o aumento e manteve o preço antigo. Isso já deu uma aliviada, mas não foi o suficiente. Negociamos, e o dono do imóvel parcelou o aluguel em atraso para ser pago no mês de dezembro, quando recebemos o 13º”, conta. Segundo ele, contudo, “sempre tem algo a mais. Algumas contas deixaram de ser prioridade no momento e viraram pendências, como conta de celular, crediário de eletrodomésticos, fatura do cartão de crédito e por aí vai”. Só agora, destaca, “as coisas estão voltando a se restabelecer”.
Apesar do momento atípico vivido em 2020, o histórico de aperto nas finanças do brasileiro não é recente. Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), realizada pela Confederação Nacional de Comércio e Bens (CNC) desde janeiro de 2010, mostra que mais da metade das famílias brasileiras costuma driblar as dívidas. O cenário ficou ainda mais crítico durante a pandemia, e os resultados chegaram a atingir o máximo da série histórica. Em agosto deste ano, 67,5% das famílias estavam endividadas no país.
Responsável pela pesquisa, a economista da CNC Izis Ferreira explica que o pico, atingido em agosto, pode estar relacionado à diminuição do valor do auxílio emergencial pago pelo governo federal e que resguardou quase 67 milhões de brasileiros durante a crise sanitária. “Com a notícia de que o valor cairia para R$ 300, muitas famílias tiveram que priorizar outros aspectos em casa, como a alimentação, por exemplo. Além disso, a inflação do preço desses bens alimentícios pressiona o cuidado com a renda”, pontua. A especialista destaca que o ajuste no auxílio implicou em “um movimento de redução de outras compras e pagamento de aquisições já feitas, para priorizar as necessidades do dia a dia”.
O levantamento também mostrou cenários diferentes de acordo com a renda. As famílias com até 10 salários mínimos, 80% dos entrevistados, experimentaram, em meio à pandemia, um período de maiores dívidas. Já as famílias que têm renda acima disso, 20% dos entrevistados afirmaram estar com as contas em dia. Depois de agosto, porém, o movimento foi inverso.
Heterogêneo
Em nível geral, o endividamento mostrou queda nos últimos três meses analisados: setembro, 67,2%; outubro, 66,5%; e novembro, 66%. O último resultado quase se iguala ao registrado no mesmo período do ano passado, quando 65,1% das famílias diziam estar endividadas. Mas, no grupo de maior poder aquisitivo, a falta de dinheiro mostrou alta de 1,5 ponto percentual (p.p.) no acumulado dos últimos três meses.
A economista da CNC associa esse movimento à recuperação do poder de compra dessas famílias. “Elas se endividaram menos do que as mais pobres, pois passaram a poupar mais recursos devido à incerteza que vivíamos. Sem previsão de reabertura do comércio ou de evolução do mercado de trabalho, essas famílias pouparam muito mais”, explica. Bom ressaltar, também, que as famílias com renda acima de 10 salários mínimos são responsáveis, muitas vezes, pela criação de empregos. A contratação de crédito para sustentar os negócios e manter uma receita ajudou a influenciar no endividamento realizado por esse grupo a partir de agosto.
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Crédito para PMEs: um pedido de socorro
De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em junho deste ano, a procura de créditos por pequenas e médias empresas (PMEs) aumentou 75% em relação a 2019. Já levantamento feito pela Gyra+, uma plataforma de crédito on-line, em setembro, indicou um aumento de 300% na procura de concessão por crédito desde o início da pandemia.
Economista especializado em gestão empresarial do Sebrae, Adalberto Luiz conta que esses empreendedores mostraram preocupação com seus negócios e buscaram ajuda. “Nós percebemos essa procura e, inclusive, o Sebrae tem oferecido um projeto chamado Crédito Assistido, dividido em três fases de atendimento, no qual auxiliamos esse empreendedor em uma gestão financeira”, ressalta. O programa oferece uma mentoria pré e pós-crédito empresarial.
A economista da CNC Izis Ferreira tem uma visão positiva da contratação de crédito. “O crédito não é algo ruim, ele fomenta o consumo e pode ser favorável. O que não é favorável é o superendividamento, quando as pessoas não conseguem sair da inadimplência e do emaranhado de dívidas. A tendência é de que a concessão de créditos siga crescendo. Por isso, dá para ver um maior número de pessoas que devem”, pontua.
E é justamente esse o aumento que o Relatório Trimestral de Inflação (RTI), feito pelo Banco Central (BC), prevê. Com a perspectiva de que, após saltar 22,6% este ano, o crédito às empresas suba 4,2% em 2021. A projeção é menor do que os 5,1% projetados no RTI de setembro e considera a evolução da atividade econômica, o fim dos programas emergenciais de crédito e a volta das grandes empresas ao mercado de capitais.
Uma das iniciativas mais recorridas pelo pequeno empresário foi o Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Pronampe), avaliado como um dos melhores subterfúgios durante a pandemia. O empreendedor e chef Marcello Lopes foi um dos microempresários que recorreram ao crédito para prosseguir com os negócios durante as medidas de isolamento social em 2020. Dono de um restaurante localizado na Asa Norte, Lopes viu-se sem saída para enfrentar a quarentena.
“Quando fechamos depois do decreto do governador (Ibaneis Rocha), em março, foi terrível. Nas duas primeiras semanas, conseguimos nos manter, pois tínhamos um capital de giro, mas, durou apenas esse período, pois (o estabelecimento) estava sem lucro e o dinheiro apenas saía”, relata. Os poucos dias fechados foram suficientes para se endividar, e contas como aluguel, imposto, água, luz e os salários de funcionários foram se acumulando. “Pagamos coisas que poderiam influenciar no funcionamento do restaurante, como o condomínio e o gás. As demais, fomos adiando e negociando, como fizemos com o aluguel”, lembra o empreendedor, que precisou inovar.
Fôlego
Sem poder receber clientes no estabelecimento, a solução foi vender pelo delivery e investir nas redes sociais. Ainda assim, diz, não foi suficiente para cobrir as despesas. “As coisas voltaram a melhorar depois de quatro meses, com o aval de abertura do restaurante e com o dinheiro do Pronampe. Com esse crédito, apesar de ser menor do que esperávamos, baseado no valor dos impostos que pagamos mensalmente, conseguimos ir colocando os débitos em dia. Compramos mais insumos e abastecemos o restaurante”, conta Lopes, que chegou a vender um carro para driblar o pior.
Embora comece o próximo ano com uma dívida de mais de dois anos, o chef se sente aliviado: “2021 vai começar no negativo, mesmo que eu ainda queira reduzir as parcelas antecipadamente para zerar o quanto antes. Mas, o Pronampe foi muito bom e muito importante. Estamos recuperando nossa receita e tendo um lucro de 70% a 80% do que tínhamos antes da pandemia. Quando terminar a carência dos empréstimos, já estaremos estabilizados”.
*Estagiários sob a supervisão de Andreia Castro
Má gestão
Para o economista do Sebrae Adalberto Luiz, nem sempre o problema da dívida está relacionado a custos ou despesas, mas, também, ao baixo faturamento do negócio. “Muitos empresários ainda não sabem como realmente funciona a sua empresa, o que dá certo para ela e para o mercado em que ela está inclusa. Não se adaptam aos novos métodos de venda e, por isso, o lucro é mais baixo do que os custos que eles têm para manter o negócio”, explica. Nessa questão, entra o planejamento financeiro, que é essencial para gerar lucros. “A gestão financeira sempre é muito importante, pois os números não mentem e uma má gestão pode gerar resultados equivocados, o que, por sua vez, leva a tomada de decisões erradas”, resume o contador Renato Dias, diretor da R&F Contabilidade e Suporte Empresarial. Para ele, o ideal é “buscar renegociar essas dívidas para quitar os débitos e, assim, não ter dificuldades ou restrições para conseguir crédito”.