Entrevista

"O Brasil perdeu o rumo há 10 anos", diz economista Fabio Giambiagi

Economista diz que o país precisa retomar as reformas e resolver o desequilíbrio das contas públicas se não quiser enfrentar outra década perdida. Para ele, porém, a atual polarização política não permite definir uma agenda a fim de tirar o país do atoleiro

Rosana Hessel
postado em 01/01/2021 06:00
 (crédito: Marcelo Ferreira/CB)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB)

O economista e especialista em contas públicas Fabio Giambiagi define a década encerrada em 2020 como “catastrófica” e afirma que, apesar da recuperação estatística em 2021, ainda há muita incerteza sobre os próximos 10 anos. “O Brasil é um país que perdeu o rumo há 10 anos”, resume. O analista avalia, ainda, que o Brasil pode perder a chance de atravessar, de forma melhor, a década que começa — e que é preciso aprovar o que for possível em 2021. “Temos uma enorme incerteza fiscal. Por isso, é preciso ter consciência de que, nos próximos dois anos, de certa forma, definiremos como será a década: se teremos maturidade para negociar politicamente no Congresso Nacional uma combinação de medidas que, simultaneamente, permitam um maior crescimento e propiciem as condições para o ajuste, ou se seremos, como nos últimos 10 anos, um país onde as demandas não cabem no PIB e com uma dívida pública explosiva”, pontua.

Ao analisar o processo de recuperação da economia ao longo da pandemia, o analista é pragmático. Apesar de reconhecer que houve uma recuperação da economia em V no terceiro trimestre, alerta que o momento não é de euforia.

Filho de argentinos refugiados da ditadura no país vizinho, Giambiagi lamenta o fato de o governo não ter uma prioridade clara. “Quais são as prioridades? Se há muitas, não há nenhuma. O governo tem que escolher duas batalhas e jogar todo seu peso nelas. Particularmente, acho que deveriam ser a reforma tributária e a administrativa. Me preocupa muito que possamos chegar a dezembro de 2022 sem que elas tenham sido aprovadas”, alerta.

Autor do recém-lançado livro O futuro do Brasil, em que aponta o país revivendo os mesmos problemas de sempre, “como se vivêssemos um eterno dia da marmota”, Giambiagi mostra que a economia demora a “engatar uma segunda” há tempos que estamos discutindo algumas reformas há mais de 20 anos, e que os problemas se repetem, num script exasperante. “O Brasil cansa”, escreveu em artigo recente.

Como o senhor definiria a década de 2020? Foi mais uma década perdida? Por quê?
Terá sido uma década catastrófica, com redução da renda per capita e, o mais importante, com a sensação de que o país se perdeu, tornando-se incapaz de definir um rumo que faça sentido, e o conserve ao longo do tempo, em contraste com o que ocorre nos países maduros.

O que esperar de 2021? Quais serão os maiores desafios do próximo ano?
Será um ano de uma recuperação estatística, em que, a princípio, poderemos ter a maior taxa de crescimento do PIB depois de 2010, mas, fundamentalmente, em função do crescimento interanual do segundo trimestre. O importante será acompanhar a tendência dos índices dessazonalizados mês a mês, a partir do começo do ano, para ver se o crescimento iniciado no terceiro trimestre de 2020 se mantém ou não. Os maiores desafios estarão associados à retomada das reformas após a escolha das novas mesas do Congresso, à preservação do teto de gastos em um ano difícil e à recuperação da demanda privada com a retração do gasto que virá com o fim dos auxílios. Olhando para a frente, o maior desafio será chegar às eleições de 2022 conseguindo criar um clima de certa tranquilidade, em contraste com outras eleições, em que a incerteza causou uma série de problemas e adiou decisões de investimento.

O Brasil é sempre visto como o país do futuro que nunca chega. Em uma analogia ao título do seu livro O futuro do Brasil, qual é o futuro que nos aguarda?
Temos condições de ter a melhor década depois da de 1970. Por quê? Temos algumas condições pelas quais minha geração esperou anos: situação externa confortável, inflação baixa e juros no menor nível da estabilização. Porém, temos uma enorme incerteza fiscal. Por isso, é preciso ter consciência de que, nos próximos dois anos, de certa forma, definiremos como será a década: se teremos maturidade para negociar politicamente no Congresso Nacional uma combinação de medidas que, simultaneamente, permita um maior crescimento e propiciem as condições para o ajuste; ou se seremos, como nos últimos 10 anos, um país onde as demandas não cabem no PIB e com uma dívida pública explosiva.

Como o senhor avalia o desempenho do governo Jair Bolsonaro nos dois primeiros anos? A agenda liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, ficou na promessa? Por quê?
A imagem que me vem à memória é a de alguém que se prepara para o casamento e, no caminho para a igreja, é atropelado por um caminhão. Evidentemente, a pandemia obrigou a rever todos os planos, e não há como o balanço ser positivo em termos de nível de atividade. Ao mesmo tempo, o fato é que o país perdeu muito tempo. Entre a aprovação da reforma da Previdência Social e o começo da pandemia, o país perdeu seis meses nos quais não fez absolutamente nada. O contraste entre a cacofonia observada no cenário nacional e os avanços registrados em alguns estados que continuaram fazendo reformas — com destaque para o Rio Grande do Sul — indica uma grande deficiência de articulação política do governo federal. Ela não funcionou em 2020, e isso é algo que certamente terá que ser revisto este ano.

Houve um desvio de rota ou erros foram cometidos desde o início do governo? Onde o governo está errando ao não entregar um crescimento maior, mesmo após a aprovação da reforma da Previdência?
Quando se observam os períodos, nos últimos 25 anos, em que o investimento cresceu, foram períodos em que o empresariado tinha a sensação de ter o que eu chamo de “chão pela frente”: a percepção de estabilidade, certa previsibilidade, a ideia de que o governo controlava a pauta legislativa etc. Isso desperta o que os economistas chamam de “animal spirit” (espírito animal), o que poderia ser traduzido como “espírito empresarial”, de querer fazer coisas, arriscar, investir. Tivemos isso nos últimos tempos? Não. O que houve foi uma confusão política enorme, ruídos por todos os lados, conflitos entre Legislativo e Executivo, entre áreas do Executivo, entre um objetivo e outro etc. Isso leva o empresariado a se manter no que eu chamo de modo “wait and see” (senta e espera) para ver o que acontece, onde está desde 2013.

Será possível fazer mais reformas estruturais nessa segunda metade do governo? Quais?
A palavra-chave aqui é “foco”. Quais são as prioridades? Se há muitas, não há nenhuma. O governo tem que escolher duas batalhas e jogar todo seu peso nelas. Particularmente, acho que deveriam ser a reforma tributária e a administrativa. Me preocupa muito que possamos chegar a dezembro de 2022 sem que elas tenham sido aprovadas. A imagem que eu tenho utilizado nas minhas lives é a de reformas que vão se “empilhando”, como quando uma pessoa meio desorganizada vai juntando as coisas no escritório e, pouco depois, a mesa de trabalho vira uma bagunça. Em janeiro de 2019, havia muitas reformas a fazer. Aprovamos uma: a previdenciária. Ótimo, mas não podemos ficar só nisso. A pauta para 2023 já começa a ficar congestionada outra vez. É preciso avançar e aprovar o que for possível em 2021.

Como o senhor avalia o processo de retomada da economia? É uma curva em V, como o ministro Paulo Guedes diz? Por quê?
Às vezes, acho que a polarização política está nos levando a uma situação em que até mesmo o significado das palavras fica deturpado. O governo cometeu uma série de erros, mas a oposição incorrerá num equívoco se negar a realidade. Eu sou filho de argentinos e vim para o Brasil quando meus pais tiveram que fugir da ditadura militar. E, naqueles anos, aprendi uma lição, dada por uma frase de (Juan Bautista) Alberdi, um prócer argentino do século XIX. Ele dizia que “o exilado sempre erra, porque confunde a realidade com seus desejos”. Por isso, desde cedo, aprendi a diferenciar a análise econômica das preferências pessoais. Cada um tem direito de ser a favor ou contra o governo, mas a realidade apresenta dados que são os mesmos para todos. E o que os dados mostram? Uma economia que colapsou entre fevereiro e abril, começou a se recuperar em maio e acelerou intensamente esse processo entre junho e setembro, desacelerando um pouco depois. Se você põe esses dados num gráfico, só a cegueira política pode levar alguém a negar que isso se pareça com um V. Isto é um fato. Agora, isso significa simplesmente que estamos voltando a nos aproximar do ponto em que estávamos em fevereiro. Não significa absolutamente nada em relação ao ritmo que será observado de agora em diante. Portanto, tivemos um V, sim, mas isso não autoriza nenhuma euforia em relação ao ritmo de recuperação ao longo de 2021.

O ministro Paulo Guedes sempre repete que o Brasil vai surpreender o mundo. Como surpreender com uma dívida pública bem acima da dos países emergentes e uma das menores taxas de crescimento econômico?
O Brasil é um país que perdeu o rumo há 10 anos. Ele estava começando, aos poucos, a recuperar um sentido de direção no biênio 2017/2019, mas depois voltou a ser corroído pela incerteza. Fico, como cidadão e como economista, cada vez mais incomodado com a polarização política que está trazendo tantos males ao país. Mantida ela, simplesmente não há futuro. Precisamos, desesperadamente, encontrar elementos de união, e não de divisão. Quando construímos essas pontes, o país avança. Foi assim com a coalizão que permitiu aprovar reformas muito importantes no período 2016/2018 e foi assim que a boa articulação entre a equipe econômica e Rodrigo Maia levou a esse resultado notável de a reforma previdenciária ser aprovada com 380 votos na Câmara de Deputados. Depois disso, tudo desandou, com base numa radicalização tão nefasta quanto sem sentido. Isso me entristece e preocupa seriamente, porque eu me criei num país (a Argentina) onde a desunião levou um dos países que, há 70 anos, era um dos mais ricos do mundo, a sete décadas de decadência. E o que vejo é que podemos estar no mesmo caminho, se insistirmos em enfatizar as nossas diferenças ao invés de fazer Política com P maiúsculo e procurar o caminho do diálogo e dos acordos políticos. Estes dias, por exemplo, o governo do Rio Grande do Sul está tentando aprovar a reforma tributária procurando ter apoio até do PT. É assim que se faz a política certa: com diálogo, com diagnóstico e com propostas.

Até que ponto as crises políticas estão atrapalhando o andamento dessa agenda liberal?
A crise política é um câncer. Ela atrapalha tudo: a crise sanitária, o andamento das reformas e até a autoestima nacional. Estamos dando um espetáculo vexaminoso, mostrando divisões quando a Alemanha se une, a França se une. Aqui, temos essas disputas fratricidas que fica impossível conseguir explicar a um estrangeiro sem sentir vergonha.

Como o senhor vê a politização das vacinas no país? Isso vai atrapalhar o processo de retomada?
Já está atrapalhando. Vemos as vacinas começando a ser aplicadas na Grã Bretanha, nos EUA, Biden sendo vacinado para dar o exemplo. E, aqui, essa confusão completa, ausência de cronograma, brigas etc. Estamos muito atrasados. Daqui a três meses, os demais países estarão saindo da crise e nós vamos começar a vacinação em massa. São vidas que se perdem, empregos que demorarão a serem repostos, etc. No contexto mundial, ficaremos mal na foto.

A Europa atravessa um novo processo de lockdown. O senhor acha que isso também pode ocorrer no Brasil? Quais os impactos disso na economia?
Por acaso nesses dias estive vendo na Netflix a série The Crown, sobre a coroa inglesa. Que é também uma série sobre a Inglaterra e sobre os ingleses. Sempre que leio e vejo filmes sobre o período, me impressiono muito com a figura da Margareth Thatcher. Quando ela executou as políticas, não o fez porque o povo estava pedindo, e, sim, porque era o que ela entendia ser necessário para a Inglaterra. A posteriori, ela se revelou certa, embora o país tenha passado por grandes dificuldades. No Brasil, infelizmente, devido à falta de maior educação da população para entender o papel da ciência, a importância da vacina, há uma parte da população que tem tido uma atitude negligente em relação aos riscos de contágio. Agora, após as festas, teremos provavelmente um crescimento significativo dos casos. No fundo, o que vemos é a expressão de uma crise de liderança. É uma situação em que a população ficou à deriva, sem uma sinalização clara acerca do que se espera que cada um faça em favor do bem coletivo. O contraste com a Alemanha sob a liderança de (Angela) Merkel ou da França sob a liderança de (Emmanuel) Macron é gritante.

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