Por volta de 1994, os mercados financeiros cobravam do governo um ajuste fiscal relevante, para que a equipe da vez não se arriscasse, à época, a enfrentar um novo e fracassado congelamento de preços. Como dizer não ao todo poderoso mercado? Dizia-se, ali, que o alto grau de vinculação de receitas era uma das causas básicas do desajuste fiscal. Acreditando que algo palatável, simples e relevante teria de ser feito, e já fora do governo, propus ao ministro Fernando Henrique Cardoso uma PEC de três parágrafos que criasse um fundo destinado a receber 20% de todos os tributos, a ser chamado de Fundo Social de Emergência (FSE), depois rebatizado de Desvinculação de Receitas da União (DRU), recursos esses que seriam, depois, reorientados para o que fosse mais importante em cada momento, inclusive não gastar. Dessa forma, far-se-ia uma flexibilização proporcional do Orçamento, mas numa escala politicamente viável.
Ainda que tenha dado certo o plano de combate à inflação baseado no FSE/DRU, entre outras medidas continua presente, até hoje, um desagradável temor de retrocesso nos mercados, pela permanente e forte desconfiança em relação à nossa classe política, talvez indevida. Por isso, continuaram pressionando o governo por mais ajuste fiscal, e ainda hoje fazem ouvidos moucos para a nova visão que, desde a crise de 2008, se espalha desde os países mais desenvolvidos de que não se deve mais combater inflação com tanta contenção monetária, ou seja, pode haver maior tolerância com deficits públicos elevados. Foi nesse clima que estourou a covid-19 e aumentaram ainda mais os temores dos mercados com o deficit público, por conta dos elevados gastos que os governos teriam de fazer para combater a crise sanitária diretamente e transferir renda para os segmentos mais frágeis.
O grande erro da gestão Bolsonaro foi não tratar a crise da covid-19 como algo seriíssimo e emergencial, que exige tratamento de “economia de guerra”, concentrando suas ações no binômio vacina-auxílio emergencial. O ministro da Economia, Paulo Guedes, tinha iniciado o atual mandato com um ambicioso e, no geral, inadequado programa de reformas estruturais, que pretendia aprovar em tempo recorde, diante de um Congresso cético e sob forte pressão dos segmentos afetados. Só se salvou a reforma da Previdência porque já havia um razoável consenso quanto à sua imperiosa necessidade e porque, na verdade, quem tracionou a aprovação de mais uma reforma parcial foram as lideranças políticas que atuavam no Congresso.
Mais recentemente, Guedes parece ter condicionado sua presença no governo à submissão e aprovação simultânea, no Congresso, de uma versão desidratada das reformas que queria aprovar desde o início, aproveitando a então iminente saída de Rodrigo Maia da presidência da Câmara, um obstáculo visível aos seus desvarios. Deve ter alegado, na linha do pensamento financeiro, que há uma pesada cobrança por um forte ajuste fiscal para acomodar os gastos adicionais, mesmo diante da atual emergência, algo hoje totalmente desnecessário na visão que se torna cada vez mais aceita no mundo. (Para uma melhor explicação disso, sugiro assistir ao evento do próximo dia 12, às 11h, clicando em https://youtu.be/tXHg7tRLX2c, no Fórum Nacional, que hoje presido).
Pois bem, pasmem. Guedes incluiu na proposta de PEC, que acaba de ser aprovada com ajustes no Senado, a desvinculação de 100% das receitas vinculadas (lá atrás, lembrem-se, em contexto completamente diferente, eu havia proposto 20%), incluindo em seu pacote um verdadeiro tiro no pé: a extinção da possibilidade de vincular quaisquer tributos à realização de atividades da administração tributária, algo que remonta à Carta de 1988 (art.167, inciso IV), que havia retirado essa possibilidade do conjunto total de proibições de vinculações, juntamente com os gastos mínimos em educação e saúde. (A propósito, dá para entender a compressão do setor de saúde, como Guedes quis, no auge da pandemia?). Na verdade, sem eliminar o ônus imposto pelo ministro sobre a administração tributária, o Senado, sob óbvias pressões dos demais interessados, preservou os quinhões dos seguintes fundos: Fundo Nacional de Segurança Pública, Penitenciário Nacional, Nacional Antidrogas, Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, para a Polícia Federal, para a Defesa da Economia Cafeeira, entre outros. E como fica quem tem de arrecadar toneladas de tributos para fechar o buraco financeiro público?
Na verdade, pela PEC aprovada no Senado, foi-se para o lixo o Fundaf, o fundo da Receita Federal basicamente composto de multas tributárias, e que se destina a garantir recursos mínimos para aquisição de equipamentos e manutenção de sistemas informatizados, desenvolvimento e aperfeiçoamento das atividades de fiscalização dos tributos federais e, especialmente, intensificar a repressão às infrações aduaneira e tributárias, entre outros objetivos relevantes. Se a Câmara mantiver esse desatino, só dá para dizer: haja desapreço por uma das instituições públicas mais sérias, capazes e relevantes do país!
Notícias pelo celular
Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.
Dê a sua opinião
O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.