Queda na longevidade afeta políticas públicas

Redução de quase dois anos na expectativa de vida no Brasil, causada pela pandemia, impacta a economia e representa retrocesso no processo de melhorias sociais. Quadro é agravado com atraso no Censo, cujas informações fundamentam ações necessárias à população

Rosana Hessel
postado em 02/05/2021 23:34

A pandemia da covid-19 já matou 3,1 milhões de pessoas no planeta, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), e os efeitos desses óbitos na economia global ainda estão sendo estudados, apesar de devastadores. Um deles é o impacto na longevidade da população. Pesquisas recentes mostram que, nos Estados Unidos, a perda na expectativa de vida, em 2020, foi de um ano e meio e na Rússia, de dois anos. No Brasil, não é diferente, de acordo com especialistas ouvidos pelo Correio.

Ana Amélia Camarano, técnica de planejamento e pesquisa na Diretoria de Estudos e Políticas Sociais (Disoc) do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), finaliza um estudo que indica que a expectativa de vida do brasileiro, em 2020, foi de 2,1 anos abaixo da registrada em 2019, passando de 76,6 anos para 74,5 anos. A especialista reconhece que, em 2021, essa queda deve aumentar já que, nos primeiros meses deste ano, o país tem mais mortes por covid-19 do que em todo o ano de 2020.

“A queda na expectativa de vida neste ano deve ser maior do que a de 2020. Os dados preliminares até abril mostram que ela pode, pelo menos, dobrar. Mas tudo vai depender também do processo de vacinação. Se for mais acelerado, pode ajudar a melhorar o cenário atual e reduzir essa queda”, explica. Pelas estimativas preliminares da técnica do Ipea, a expectativa de vida de mulheres passou de 80,1 anos para 78,3 anos entre 2019 e 2020, e a de homens, de 73,1 anos para 70,1 anos, no mesmo período. “No meu primeiro trabalho, as perdas com as mortes em 2020 foram de 2,1 anos e, olhando para os dados até abril, vamos continuar perdendo”, afirma.

O aumento da expectativa de vida é um sinal da melhoria nas condições básicas da população e, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vinha ocorrendo desde o início da série, nos anos 1940. De acordo com informações do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), o número de mortos pela covid-19 chegou a 194.949 no fim de 2020, e, neste ano, o total de óbitos registrados desde o início da pandemia foi de 403.781 óbitos até sexta-feira. Ou seja, 208.832 pessoas morreram desde janeiro no país, mais do que em todo o ano passado. Logo, o choque provocado pela pandemia elevou as taxas de mortalidade de uma forma assustadora, que afetou esse indicador, em 2020, pela primeira vez em todos esses anos. E, para piorar, a avaliação de analistas é de que, em 2021, essa queda será igual ou maior do que a do ano passado.

Estudo recente feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e das norte-americanas Harvard, Princeton e Universidade do Sul da Califórnia também mostra que a crise sanitária, roubou, sozinha, quase dois anos da esperança de vida no Brasil. Conforme o levantamento, a estimativa era de que o índice médio chegasse a 77 anos em 2020, mas, por causa da pandemia, ficou em 75.

O demógrafo Cassio Turra, professor da UFMG e um dos autores desse levantamento com as universidades dos Estados Unidos, reconhece que a tendência é de que, em 2021, a expectativa de vida do brasileiro continue abaixo da projetada, já que o número de mortes por covid-19 ainda é expressivo e supera o registrado em 2020. Contudo, ele demonstra otimismo em relação a 2022, “se houver sucesso no processo de vacinação” e a crise sanitária for, de fato, controlada. Assim, as taxas de mortalidade podem voltar ao patamar de antes da pandemia. “Acho que, assim que a vacinação for bem-sucedida, a partir do segundo semestre, o mais provável é que, em 2022, o país retorne aos níveis normais projetados”, destaca.

Retrocesso
A queda na expectativa de vida do brasileiro significa um recuo maior no processo de melhorias sociais que estava em curso, no entender do economista Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social). “Os dados ainda são conservadores, porque, nesses cálculos, as causas das mortes não são bem computadas. Logo, o retrocesso pode ser maior, porque, a cada três anos, o brasileiro vinha ganhando um ano de expectativa de vida. Se houve uma queda de dois anos, na verdade, o país perdeu quase sete anos, até agora, em termos de avanços na qualidade de vida”, lamenta.

De acordo com Neri, o cenário de agravamento da pandemia no país e o atraso na realização do Censo só contribuem para que as pesquisas domiciliares fiquem ainda mais defasadas. “Estamos vivenciando um apagão de estatísticas generalizado”, critica. Ele lembra que faltam estudos para medir o comportamento da sociedade durante a pandemia desde o fim da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) Covid, interrompida em novembro pelo IBGE. “Houve um certo exagero no início, mas o país perdeu esse instrumento que media até as testagens e, agora, não temos mais”, acrescenta.

Mônica Viegas Andrade, professora Associada do Departamento de Economia e coordenadora do Grupo de Estudos em Economia da Saúde e Criminalidade (GEESC) da UFMG, também alerta para os riscos dos atrasos na realização do Censo. “É claro que essa discussão é complexa, porque impacta todas as políticas sociais e, diretamente, a contagem da população. Mas também todos os sistemas de transferência são dependentes dessa contagem, e a construção de políticas sociais precisa estar baseada na expectativa de vida da população também”, ressalta. “Estamos com 11 anos sem esse tipo de informação e isso é um lag muito alto e, quanto maior for esse prazo, maior poderá ser o erro das estimativas. Logo, o cenário é muito ruim”, enfatiza.

Assim como Turra, Mônica Viegas acredita que será temporário o impacto, na economia, da queda na expectativa de vida. “A covid-19 provocou um excesso de mortalidade global, e todos os países estão tendo perdas na expectativa de vida. Mas ainda é precipitado fazermos cálculos dos impactos, porque a pandemia ainda não acabou”, frisa. “E, se o Brasil conseguir avançar na oferta de vacinas no segundo semestre, reduzindo a dependência externa para o fornecimento de insumos e de imunizantes, será possível reverter o quadro atual.” Ela lembra que a UFMG também está desenvolvendo uma vacina, com “resultados promissores” e busca recursos para consolidar a terceira fase do estudo. “Prefiro ser mais otimista”, diz.

O economista Ecio Costa, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), espera que, ao longo do tempo, o panorama seja modificado. “A pandemia reduziu isso, mas eu acredito que é algo temporário, e essa queda será revertida. A tendência é de que a expectativa de vida continue aumentando ao longo do tempo”, afirma. Para ele, o marco do saneamento básico será importante para ajudar na continuidade da tendência, porque vai reverter a situação de muitas pessoas que vivem sem oferta de água potável e de esgoto. “Se os investimentos previstos ocorrerem, podemos ter um aumento considerável na expectativa de vida”, acrescenta.

Ônus do coronavírus

De acordo com dados do IBGE, desde 1940, a expectativa de vida da população brasileira vinha aumentando, mas a pandemia da covid-19 mudou esse quadro

Evolução da expectativa de vida do brasileiro — em anos

Ano Homem Mulher Média
1940 42,9 48,3 45,5
1950 45,3 50,8 48,0
1960 49,7 55,5 52,5
1970 54,6 60,8 57,6
1980 59,6 65,7 62,5
1991 63,2 70,9 66,9
2000 66,0 73,9 69,8
2010 70,2 77,6 73,9
2018 72,8 79,9 76,3
2019 73,1 80,1 76,6
2020 70,1* 78,3* 74,5*

*Estimativa da economista Ana Amélia Camarano, do Ipea.
Fontes: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)

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Perdas como numa guerra

Analistas reconhecem que ainda é cedo para ter dados precisos sobre os impactos da pandemia da covid-19 na economia e a redução da expectativa de vida do brasileiro, mas não descartam a magnitude de uma guerra sem precedentes.

O economista e consultor Paulo Rabello de Castro, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), avalia que os impactos das mortes pela doença ainda são difíceis de calcular e podem ser piores do que os de um conflito armado. “Na guerra, morrem, especialmente, pessoas mais jovens e que ainda não entraram no mercado de trabalho. Agora, em uma situação como a covid-19, havia uma mortalidade maior entre os idosos, mas, atualmente, podemos considerar que 50% dos óbitos são de pessoas que estão dentro do mercado de trabalho”, alerta.

Ele lembra que não existem dados mais aprofundados com o agravamento da covid-19 no país neste início de ano. Além disso, um fato preocupante é que cada vez mais jovens estão morrendo por conta das novas variantes do vírus. “Muitos desses óbitos são de contribuintes da Previdência Social e, certamente, a arrecadação está caindo ou deverá cair mais. No frigir dos ovos, é uma notícia muito ruim em todos os sentidos”, completa.

Procurado, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) informou que ainda não tem um levantamento sobre os cancelamentos de aposentadorias e a respeito da queda na receita devido às mortes por covid-19.

Dependência
Ecio Costa, professor do Departamento de Economia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), também chama a atenção para a constatação de que quase a metade dos 400 mil mortos pela covid-19 no país é de aposentados. “Há um número elevado de idosos morrendo, e nos estados do Norte e do Nordeste existem muitas famílias que dependem das aposentadorias. Essa perda, em números tão elevados, é uma preocupação não apenas para a economia, mas para aquelas famílias que ficarão sem a pensão”, ressalta.

Na avaliação de Rabello de Castro, o fato de o Brasil ter ultrapassado a marca de 400 mil mortes recentemente e poder chegar, em breve, a 600 mil, segundo previsões de especialistas, provocará perdas expressivas para a economia. Pelas estimativas dele, considerando que para cada vida interrompida estaria associada uma “riqueza” perdida de R$ 200 mil — valor acumulado da aposentadoria da maioria — e que, quando o país chegar a 500 mil mortos um número parecido de pessoas podem ter ficado debilitadas, o prejuízo deve girar em torno de R$ 200 bilhões, o equivalente a 3% do Produto Interno Bruto (PIB).

“É lícito fazer a conta com um milhão de pessoas, porque haverá um grande número delas que deve ficar com sequelas da covid-19”, justifica Rabello de Castro. Ele ressalta que esses valores representam um esforço de quantificação do valor das vidas perdidas ou prejudicadas e não um efeito econômico em termos de paralisia de atividades, interrupção de escolarização ou treinamentos, por exemplo. (RH)

“Há um número elevado de idosos morrendo, e nos estados do Norte e do Nordeste existem muitas famílias que dependem das aposentadorias. Essa perda, em números tão elevados, é uma preocupação não apenas para a economia, mas para aquelas famílias que ficarão sem a pensão”

Ecio Costa, professor do Departamento de Economia da UFPE

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