Outro vírus letal
Tristeza é o sentimento dominante entre nós, brasileiros. Só doente da cabeça pode estar satisfeito com “tudo isso que está aí”. Mortes excessivas, devido ao desgoverno da pandemia, e emprego de menos, por décadas de descaso com o investimento produtivo e a formação da população, resumem a nação fracassada. Poderíamos ser das mais bem-sucedidas. Há tudo para isso. Esse é o enigma a desvendar.
Por onde começar? Já ajuda ignorar o besteirol de Jair Bolsonaro — meras distrações para desviar o foco sobre sua falta de rumo, além de prioridades infantis. Por que, por exemplo, beatificar vermífugo e cloroquina contra ameaça viral só tratável, seja qual for o tipo de vírus — H1N1, poliomielite etc. —, com vacina?
Por que insistir em armar a população, em vez de requalificar o aparato policial, detentor do monopólio constitucional da força? Ou seu ministro da Economia, um trader de mercado financeiro que se vê como formulador macroeconômico, entender a miséria como sequela da preguiça dos pobres e supor que o Estado é a causa do crescimento econômico estagnado, merecendo, por isso, ser desmontado?
Em que parte do mundo o Estado é inimigo da pujança empresarial, se ela floresce em países com a economia planificada, como a China dita marxista, e em sociedades autenticamente liberais, como Japão, Suíça e Alemanha, todas com setor público amplo, embora eficiente?
Nos EUA, matriz ideológica de nossos liberais de vitrine, nunca se repudiou o Estado desenvolvimentista, apesar da arenga neoliberal. Nem poderia, com orçamento militar de US$ 700 bilhões, maior que o dos nove países seguintes neste ranking. Tais mecanismos do Estado estão “solidamente 'escondidos' atrás do barulho ensurdecedor dos encantamentos do livre mercado”, dizem os professores Stefan Link e Noam Maggor num ensaio intrigante publicado pela Oxford Press.
O Estado, ou “governo grande” como prefere criticar a ortodoxia do livre mercado, conspira contra as atividades privadas em países nos quais o governante e seus apoiadores assumiram com discurso contra a corrupção, a defesa da liberdade individual, ataques contra ricos desalmados, e se tornaram déspotas ignorantes e cruéis, presidindo tiranias que, no Brasil, se tenta colar em quem diverge de Bolsonaro.
Financismo escalafobético
A Venezuela, avocada como exemplo do que o Brasil pode tornar-se com o modelo econômico praticado desde o fim do planejamento econômico dos anos 1970 e porcamente reabilitado no governo Dilma Rousseff, é o oposto do Estado desenvolvimentista. Como El Salvador, onde o seu jovem presidente, Nayib Bukele, se serviu de maioria legislativa para chutar a autonomia do Judiciário, ocupando-o com apaniguados — um ato ditatorial elogiado no Twitter por um dos filhos de Bolsonaro.
Tais governos fracassados ou são vítimas ou são vilões do modelo econômico que mal compreendem, sendo repudiado por uma maioria que só faz crescer no mundo — da França e Itália, na Europa, a Chile, Colômbia e Argentina, na América do Sul, e aos EUA de Trump e Biden.
Surpreendente é que, tanto os empresários da economia real, quanto a larga parcela empobrecida da sociedade, ou tratada como invisível, estejam passivos, apesar das evidências do fracasso do financismo escalafobético que pilota há 40 anos a macroeconomia. Guedes culpa os governos socialdemocratas, supostamente pelo olhar social, que houve, mas mais como compensação ao crescimento pífio que pelo que os bolsonaristas imaginam — um viés esquerdista. Não sabem nada.
Estagnação é marca antiga
Os dados oficiais dão a dimensão dos 40 anos perdidos no Brasil, e exemplos comparativos abundam. A renda per capita brasileira era o dobro da da Coreia do Sul em 1960. Em 1980, estavam empatadas. Hoje, a deles excede o dobro da nossa. Em relação à China, nossa renda era o triplo em 1960; cinco vezes maior em 1980; hoje já é igual.
“Se mantiver o crescimento dos últimos 40 anos (0,9%), o nível do PIB per capita voltaria ao mesmo nível pré-recessão só no terceiro trimestre de 2028”, dizem os economistas da FGV Marcel Balassiano e Juliana Carvalho Trace. Se mantiver o ritmo de 2019 (0,3%), dizem, “o cenário será mais dramático, voltando ao mesmo nível só daqui a mais de 25 anos” (ou seja, em 2045). Não mudar equivale ao time ameaçado de rebaixamento que repete técnico e escalação.
De 2011 a 2020, o PIB cresceu no acumulado de 10 anos 2,2%, e sem crise internacional para justificar desempenho tão pífio. Na década que se foi, pelos dados do FMI, o mundo cresceu 30,5%. As economias emergentes cresceram 47%. Foi um massacre. A população avançou 8,7% nestes 10 anos, implicando queda da renda per capita de 0,6%.
Estagnação é marca antiga. Retrocedendo há 40 anos, chega-se a um crescimento médio anual de 2%. Esse é o enigma a elucidar: a falta de crescimento ao menos em linha com a expansão econômica mundial.
É preciso reler o passado
É muita ingenuidade e ideologia radical supor que reformas de viés liberal sejam suficientes para destravar a economia. Falta-nos mais que tudo enfrentar o passado recente da ditadura, bem estudado pela vertente da privação da liberdade e atentados aos direitos humanos, mas pouco considerado pelo seu aspecto econômico.
As distorções do período, com estatização, dirigismo empresarial, concentração de renda e financiamento com dívida externa, marcaram de morte o sentido do planejamento nacional e do Estado como agente coordenador do desenvolvimento, que é o que distingue o mundo bem-sucedido de sua porção fracassada ou sem futuro. Obviamente, não se trata de resgatar esse modelo, mas adaptá-lo ao tempo tecnológico.
Como diz Jonathan Levy no livro Ages of American Capitalism: A History of the United States, referência para se informar sobre a visão econômica de Joe Biden, os ganhos econômicos nos EUA sempre foram conduzidos pelo Estado. “Política de mercado e instituições de desenvolvimento têm sido a regra, e não a exceção”, diz.
Para voltar a alegria
Mas e o cronismo, o compadrio, a corrupção?, criticará o cético de sapatênis. Stephen Haggard, da Universidade da Califórnia, conta, em Developmental States, que “forjar políticas industriais eficazes (na Ásia) não envolveu burocratas isolados escolhendo ‘vencedores’, mas instituições políticas facilitando a coordenação entre Estado e atores privados num processo interativo de aprendizagem”. Está aí.
Esse é o caminho. Estado e sociedade, incluindo o capital, atuando juntos, não divorciados, como tem sido aqui. Faremos? Para voltar a alegria perdida, a resposta é essa. Mas com cloroquina apenas contra malária, e ivemerctina contra sarna e piolho. Taoquei?
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