ECONOMISTA

Queda na expectativa de vida eleva aposentadorias, diz consultor do Congresso

Pandemia do novo coronavírus reduz a idade média dos brasileiros, e aqueles que forem se aposentar entre 2022 e 2023 pelo sistema do fator previdenciário devem ter aumento nos contracheques. Mas será um processo transitório, pois se espera controle da crise sanitária

» ROSANA HESSEL » VICENTE NUNES
postado em 10/05/2021 06:00
 (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
(crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A pandemia da covid-19 tem provocado mudanças profundas na sociedade global, e no Brasil não é diferente. E um dos impactos das transformações se dará nas aposentadorias, cujos valores devem aumentar a partir do ano que vem, na contramão da reforma previdenciária. Motivo: a queda na expectativa de vida do brasileiro. É o que diz o economista Pedro Nery, doutor em Economia pela Universidade de Brasília (UnB) e consultor de economia do Congresso Nacional.

Pelas regras ainda em vigor, quanto maior a expectativa de vida, maior é o fator previdenciário, que funciona como um desconto sobre o valor a ser recebido pelos aposentados. Como a idade média dos brasileiros vai diminuir pelo menos dois anos, quem se aposentar em 2022 e 2023 pela regra que leva em consideração o fator terá um contracheque maior, já que o abatimento será menor. É importante ressaltar que o fator previdenciário só valerá durante o período de transição da reforma — a partir de 2027, entrará em vigor a idade mínima de 65 anos para homens e, em 2031, de 62 anos para mulheres.

“A redução da expectativa de vida aumenta o valor das novas aposentadorias. Esse será o caso daquelas que são calculadas pelo fator previdenciário. Desde que foi implementado, houve uma tendência de o fator ser maior a cada ano, porque a expectativa de vida subia — diminuindo o valor das aposentadorias. A lógica era de que o recebimento da aposentadoria se daria por mais tempo, então, haveria um ajuste (para baixo) no valor”, explica Nery. Foi a forma que o governo encontrou de estimular as pessoas a contribuírem por mais tempo com o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Segundo ele, esse processo de expectativa de vida menor e aposentadorias maiores poderá persistir se a vacinação contra a covid-19 não for acelerada e bem-sucedida. “Com a pandemia, devemos observar queda na expectativa de vida nos dados de 2020 e de 2021. Isso deve afetar o fator previdenciário em 2022 e em 2023”, acrescenta. Desde que o fator previdenciário foi adotado, há mais de 20 anos, nunca se viu um quadro como esse.

Nery destaca, ainda, que a pandemia do novo coronavírus vem agravando um problema histórico do Brasil: a desigualdade social, sobretudo pelo fato de o governo não ter como prioridade um programa de distribuição de renda aos mais pobres. O atraso na renovação do auxílio emergencial é uma prova disso. “O governo não consegue considerar esse tema como prioritário”, lamenta. Ele lembra que as maiores economias do planeta, como os Estados Unidos, estão focando nessa questão. “Não vemos nenhuma proposição, de fato, sendo apresentada. Nenhum projeto de lei, nenhuma PEC (Proposta de Emenda à Constituição)”, diz.

Os retrocessos nas conquistas sociais, segundo Nery, já estavam em curso antes da pandemia e podem ser acentuados se houver demora no controle da crise sanitária. Ele defende a necessidade de cortes de gastos para um programa de renda mínima robusto, que custe algo em torno de R$ 100 bilhões por ano — quase três vezes mais do que o atual Bolsa Família —, mas isso exige vontade política para reduzir despesas supérfluas e privilégios.

Apesar da redução da pobreza ocorrida em 2020 por conta do auxílio emergencial, Nery alerta que, neste ano, com o agravamento da pandemia, o Brasil ainda pode retroceder mais no campo social, já que o auxílio é menos robusto do que foi no ano passado (caiu de R$ 600 para, no máximo, R$ 375). A despeito das promessas, não há um plano claro do governo para melhorar a distribuição de renda no país, que tem mais de 14 milhões de desempregados e 38 milhões de invisíveis, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma definir as pessoas que são desassistidas pelos programas atuais.

“Chamamos isso de desigualdade em V. A desigualdade até caiu, por conta do auxílio, e, agora, está subindo. O país não consegue a recuperação do Produto Interno Bruto (PIB) em V, no sentido de que cai bastante e depois sobe muito rápido, mas observamos isso nos indicadores sociais”, alerta. Para Nery, o quadro pré-eleitoral tornará os invisíveis mais visíveis, e essa será uma oportunidade para avanços de uma agenda mais inclusiva. A seguir, os principais trechos da entrevista:

 

A pobreza e a miséria não param de crescer no Brasil. Muito se atribui à pandemia, mas o país já atravessava um processo de reversão de conquistas importantes, a ponto de voltar para o mapa da fome. O que aconteceu? Por que o Brasil regrediu nessas questões sociais?
O primeiro evento que promove esse retrocesso é a recessão de 2015 e 2016, quando os ganhos sociais começaram a ser desfeitos. O que chama a atenção entre aquela recessão e a recessão de agora é que houve uma recuperação da economia e do mercado de trabalho, mas a recuperação dos indicadores de pobreza foi muito tímida. É como se a recessão para os mais pobres tivesse continuado. É como se o PIB dos pobres, digamos assim, não tivesse se recuperado. E acho que o país não tem percebido isso. Não houve ampliação do Bolsa Família, o país não fez nenhuma reestruturação dos programas sociais para acolher essa população. O que chama a atenção, quando olhamos para o período do fim do governo Dilma Rousseff e o início do governo Michel Temer, é que houve aumento do nível do gasto público, mas não foi uma elevação baseada em transferência de renda para a população mais pobre. O país chegou com a situação dramática antes do novo coronavírus e, com a pandemia, piorou. O auxílio emergencial anterior segurou, por um tempo, a elevação da pobreza, mas houve, certamente, um atraso do governo em renovar o auxílio para este ano. Vamos lembrar que, do final de 2020 até abril, a população ficou sem o benefício justamente quando o pior da pandemia estava acontecendo. Nessa situação, as pessoas precisaram ficar em casa, e as famílias com trabalhadores informais perderam muita renda. O quadro é, de fato, muito grave.

Por que o governo brasileiro está com tanta dificuldade em perceber o agravamento dessas questões sociais?
O governo não consegue considerar esse tema como prioritário, porque, quando olhamos as intenções, até algumas coisas começaram a ser planejadas, mesmo antes da pandemia. Em 2019, por exemplo, o governo sinalizou apoio a uma proposta de pesquisadores do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) para a criação de um benefício universal infantil e, mais recentemente, se fala em um bônus para trabalhadores. Mesmo durante a campanha, tem esse fato inusitado, o plano de governo previa algum tipo de renda universal. Mas não vemos nenhuma proposição, de fato, sendo apresentada. Nenhum projeto de lei, nenhuma PEC. Existe alguma esperança, para este momento, porque, naturalmente, com esse cenário de milhões de invisíveis, eles tendem a ser muito mais visíveis nas pesquisas de opinião. Estamos na pressão de um ano pré-eleitoral, e essa situação grave pode se refletir na popularidade do governo, especialmente depois que ele perdeu uma parte de seu apoio nas classes mais altas. Existe a expectativa de que o governo apresente uma ampliação desse gasto social, que era o que o Congresso tinha tentado bastante. Tem muito projeto nesse sentido.

Até o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o governo crie um programa de renda mínima a partir de 2022. Esse é o caminho?
Eu acho que é um caminho. Mas, o mais importante, independentemente de que tipo de programa vai ser, se for mais focalizado ou mais universal, é ter uma fonte de financiamento. Essa é a grande discussão. Tudo bem, o STF fala que tem que ampliar o Bolsa Família ou criar um programa, mas falta todos entenderem que, para que esse programa seja, de fato, efetivo, é preciso mobilizar uma quantidade maior de recursos. O país tem condições de fazer isso. O Brasil não é um país rico, mas não é um país pobre. Só que, em um ano normal, o Bolsa Família mobiliza pouco mais de R$ 30 bilhões por ano. Isso dá uns 2% (das despesas) do Orçamento. É muito pouco. Tem de rever gastos com o funcionalismo, tem que rever isenções tributárias. Acho que um bom programa seria da ordem de uns R$ 100 bilhões por ano. O país tem condições de erradicar a pobreza extrema e, talvez, até erradicar a pobreza infantil. Mas é preciso diagnóstico da necessidade de aumentar o Bolsa Família e criar um programa de renda básica para suprir a necessidade de cortar em outros lugares para abastecer essa política.

Com relação ao Orçamento de 2021, que teve toda aquela confusão, o governo já não deveria ter previsto algo nesse sentido? Haveria espaço para um programa social quando a prioridade parece ser atender emendas de parlamentares?
Acho que tinha espaço (no Orçamento) e, por isso, digo que o governo parece não priorizar isso. Dada a trajetória da popularidade do governo e o êxito do auxílio emergencial, é impressionante que isso não tenha sido considerado prioritário. Realmente, chama muita atenção. Estamos vendo um aumento grande da pobreza no país depois de termos passado por um período de redução do número de pobres no período do auxílio emergencial mais robusto. É o que estamos chamando de desigualdade em V. A desigualdade até caiu, por conta do auxílio, e, agora, está subindo. O país não consegue a recuperação do PIB em V, no sentido de que cai bastante e depois sobe muito, mas observamos isso nos indicadores sociais.

O fato de as eleições presidenciais estarem se aproximando favorece o lançamento de programa sociais mais robustos?
Um dos motivos de o país não ter uma política social mais consistente é que existe uma discricionariedade grande. Por exemplo, no caso do Bolsa Família, o benefício não é nem indexado à inflação. Portanto, em termos reais, perde valor, a não ser que o governo aja para reajustá-lo. Isso não existe, por exemplo, com outros benefícios, como o da Previdência e os trabalhistas, como seguro-desemprego, que são protegidos. De fato, podemos observar que o Bolsa Família teve valores mais altos em 2010 e em 2014. Um dos motivos para essa discricionariedade é que esse público não está protegido pela Constituição. Estamos falando de famílias mais pobres, que não têm capacidade de organização, não formam associações, sindicatos, e tem uma capacidade muito baixa de se articular pelos seus interesses, porque os valores envolvidos são muito modestos. Como alguém vai pagar advogado recebendo R$ 80 por mês? O ideal seria um caminho, sim, de constitucionalidade, desse tipo de política. Já que o programa disputaria recursos do Orçamento com outras políticas que estão previstas na Constituição, seria natural. Algumas propostas no Congresso vão nesse caminho. E, é claro, ressaltando que é importante, além desse movimento, tentar dizer de onde virão esses recursos.

Pobre não tem lobby organizado em Brasília...
Não tem. Exatamente.

O Bolsa Família já cumpriu o papel dele? O que precisa ser feito? Ele é um modelo para um programa social mais consistente?
O Bolsa Família é um bom modelo, porque tem uma capilaridade boa e o pessoal na ponta é bem treinado e familiarizado com o programa. Acho que, ainda que mudasse de nome, ou tivesse alguma diferença, é importante que essa capilaridade fosse mantida. Mas o que é preciso mesmo é de recursos. O piso do Bolsa Família é de R$ 40 por mês, por exemplo, no caso de uma doméstica morando com um filho com alguma renda e que não seja extremamente pobre, para os parâmetros do programa, só recebe isso por uma criança. Não é preciso pensar muito para perceber que não é uma questão de desenho, mas de valores, para termos uma situação melhor. O Bolsa Família precisa tanto de uma recomposição nos valores quanto — e, talvez, mais importante — de uma revisão dos limites de acesso ao benefício e das linhas de pobreza. A pessoa, para receber o auxílio tem que estar em uma situação muito ruim. É preciso acolher mais famílias, ainda que os valores não sejam os mesmos.

Ainda há muito preconceito com quem recebe ajuda do governo? Mas o país tem um passivo grande para resolver, dado o nosso histórico de concentração de renda e de desigualdade...
Acho que tem cada vez menos preconceito. A experiência do auxílio emergencial ajudou uma boa parte da população a perceber a importância desses benefícios. E, de certa forma meio paradoxal, a própria saída do PT do governo ajudou a legitimar um pouco, porque o programa deixou de ser contaminado pelo antipetismo. O Bolsa Família foi muito visto como um dinheiro para ajudar a conseguir eleitores. Agora, existem propostas interessantes para evitar esse estigma, dado que boa parte da população recebe algum benefício do governo, seja diretamente, como o previdenciário, seja indiretamente, como isenção do Imposto de Renda. É interessante buscar alguma forma de acolher os mais pobres que passe por algum benefício que também é recebido por famílias menos pobres. Essa, por exemplo, é a proposta do pessoal do Ipea do benefício universal infantil. Tem todo um arranjo de unificar os benefícios, inclusive, aqueles para crianças no Imposto de Renda. É um caminho.

O Brasil perdeu a luta contra a pobreza ou ainda há tempo de revertê-la?
A gente ainda não perdeu. Há tempo sim. Passamos por um período auspicioso de redução da pobreza, desde o Plano Real e nos primeiros anos do Bolsa Família. Existe tempo, e essa é uma discussão que precisa ser feita, até pelas mudanças tecnológicas atuais, que fazem com que muitas famílias não sejam mais incluídas no modelo de proteção anterior, porque é muito baseado em emprego com carteira assinada, algo que está mudando. Vai ser importante, mesmo para as famílias que têm pessoas trabalhando, ter algum tipo de transferência que não dependa da contribuição direta e do vínculo com o patrão. Um benefício como o Bolsa Família é um caminho importante. Estamos vendo que muitos países estão discutindo isso. Até mesmo os Estados Unidos, o que era uma coisa até pouco tempo impensável para um país com tradição tão liberal pensar nesse tipo de política. Existe esperança de que, nessa legislatura ou na próxima, o país consiga fazer uma transformação mais importante para voltar àquela trajetória de redução da pobreza que o país vivia.

O salário mínimo sempre foi visto como importante instrumento de distribuição de renda, com correção acima da inflação. Mas o ministro Paulo Guedes critica muito o mínimo e diz que atrapalha a entrada de jovens no mercado de trabalho. Como o senhor avalia a questão?
De fato, quando olhamos os dados, efetivamente, o beneficiário do salário mínimo migrou, na distribuição de renda, para grupos mais intermediários. Não quer dizer que quem o recebe é rico, de forma alguma. Mas quem recebe um salário mínimo no Brasil atual não é mais a pessoa que está na pior situação. É meio dramático dizer isso, mas é porque essa pessoa, pelo menos, tem um emprego. Existe a preocupação de quem ficou para trás e que nem o salário mínimo consegue receber. De fato, com uma situação de um Orçamento apertado e com uma disputa de recursos muito dura, o Bolsa Família sai na frente em relação à possibilidade que tem, principalmente, para reduzir a pobreza extrema. Talvez, para o público do salário mínimo, seja mais interessante o abono salarial, alguma outra política que não afete a empregabilidade, que é uma preocupação que o Paulo Guedes tem, por exemplo, mas que o Lula externou no passado, em relação à legislação trabalhista para os jovens. Mesmo um governo de esquerda, assumindo a partir das eleições do ano que vem, vai ter dificuldade para retomar o ritmo de valorização do salário mínimo diante da situação fiscal e do desemprego alto. O caminho passa mesmo por uma valorização do Bolsa Família e menos pelo salário mínimo.

Qual é o caminho para o país acelerar o processo de redução da pobreza? É a educação?
Acho que são duas coisas. É muito importante a transferência de renda, principalmente para aquelas famílias com dificuldade de inserção no mercado de trabalho. Agora, a longo prazo, certamente, passa pela educação, desde a primeira infância. Existe uma atenção grande da ciência, modernamente, para essa fase de desenvolvimento. Não é algo que era tão importante no passado, mas, agora, existem políticas sendo desenvolvidas para creches, para transferência de renda para famílias com crianças de até seis anos, que é considerado um período voltado para a formação do cérebro e das habilidades cognitivas. Sem dúvida, a educação é um caminho para o desenvolvimento de longo prazo, inclusive, para o filho do porteiro.

O modelo de educação que temos não é exclusivo?
Não sou especialista em educação. O que mais me preocupa em relação à educação agora é, de novo, essa questão da primeira infância. Temos um sistema de creche ainda muito incipiente. Existe pouca mobilização da sociedade nesse sentido e poucos lobbies. Há algumas experiências interessantes, como o Criança Feliz, com visitação domiciliar para ensinar uma mãe como estimular o filho e como olhar para ele. Existem programas bem-sucedidos no Ceará, mas é preciso, em larga escala, olhar para essa fase da vida. Porque os estudos têm mostrado que é mais difícil recuperar depois. Se tem escola boa ou se, em políticas para o mercado de trabalho, não vai ser tão simples se a situação de um cidadão que perdeu a primeira infância num ambiente muito estressante, num ambiente de miséria e num ambiente sem acesso à água limpa. É muito difícil para o cérebro dele recuperar esse período. Em termos de educação, essa é a grande questão para discutirmos: a ênfase na primeira infância. Ela passa pela educação, pela ênfase num sistema de creches, que está muito longe de ser universal.

E onde entra o crescimento econômico? O Brasil não cresce, praticamente, há 15 anos, na média…
O crescimento é muito importante, principalmente para o país ter capacidade de financiar políticas. Mas tem uma questão interessante num país que é tão desigual: se olharmos muito para PIB, a gente periga não olhar para os mais pobres. Se o PIB é uma média sobre todas as rendas, a variação da renda do pobre, como é bem menor, vai contar pouco. Podemos correr o risco de não perceber que a situação dos mais pobres não está melhorando, mas os mais ricos estão vivendo melhor, e, como a renda dele é maior, o PIB pode parecer crescer. Hoje em dia, realmente, o mais preocupante é o desemprego. Ainda mais depois dessa crise que atingiu as famílias de forma tão desigual. O PIB, talvez, já não seja a melhor métrica para analisar o país.

Dado o contexto do país, o que deve ser focado pelo governo para conter esse aumento da pobreza? O que é prioritário?
O prioritário é construir uma ampliação dessa rede de proteção social, seja pelo Bolsa Família, seja por outro programa. E é prioritário arrumar os recursos para isso. Acho que é importante que o governo consiga pautar outras reformas, como, por exemplo, a administrativa e a tributária. Tem que tentar discutir a questão social com outras agendas para mobilizar os recursos. Todo mundo é a favor de ampliar a transferência de dinheiro para os mais pobres, mas, na hora de escolher quem vai pagar, fica mais difícil. Essa é uma discussão central. E, nesse contexto da pandemia, é uma grande oportunidade para discutir isso. Talvez, em um outro momento mais calmo, não seja tão fácil. É uma grande oportunidade, como os Estados Unidos estão tentando fazer.

A política do presidente Joe Biden (EUA) agora é de mais Estado, enquanto o Brasil fala de menos Estado. O país parece que vai sempre na onda contrária...
Parece.

O senhor acompanhou de perto a reforma da Previdência. Os ganhos esperados vieram?
No fim de 2019, o país passou por uma redução dos juros e do risco país, que acompanhava o êxito da reforma da Previdência. Mas a reforma foi praticamente promulgada, ao que parece, no momento em que o vírus nascia, em novembro de 2019. O consenso é de que a reforma ajudou muito a financiar o auxílio emergencial e a resposta à pandemia. O país chegou a uma situação fiscal que não teve nos últimos anos. Mas não vamos colher os benefícios de médio e longo prazos, muito embora se ficasse naquela economia de R$ 1 trilhão. Podemos achar que o efeito já foi todo consumido durante a pandemia, mas estaríamos em uma situação mais adversa se não tivéssemos feito aquela mudança da Previdência.

Com a pandemia, há uma queda grande na expectativa de vida do brasileiro. Que impacto isso tem nas políticas públicas?
Essa queda, ao que parece, vai ser conjuntural. Há uma expectativa de que, em algum momento, haverá a vacinação e o controle dessa doença. A curto prazo, a queda na expectativa de vida vai afetar, principalmente, a concessão das aposentadorias. Aquelas que são calculadas pelo fator previdenciário vão acabar aumentando. Será algo inédito. O fator previdenciário vinha sempre aumentando por conta da expectativa de vida maior (reduzindo o contracheque dos aposentados). Agora, o fator vai diminuir temporariamente (elevando o valor a ser pago). Mas, eu acho que, de forma permanente, não tende a ter nenhum impacto relevante, pois estou supondo que a doença vai ser, eventualmente, controlada.

Se isso não acontecer, é possível ter ciclos de redução da expectativa de vida?
Sim, pode. Tem uma janela de curto prazo. Alguns estados já estão reportando aumento nas taxas de ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação), que é pago na ocasião da herança. Mas, a longo prazo, talvez, o principal impacto da pandemia para as políticas públicas seja na educação. Muita criança ficou sem estudar direito, e isso vai gerar sequelas. O país já tinha grandes desafios de melhorar a educação, de fazer os recursos investidos serem traduzidos em indicadores de provas de proficiência, em salários melhores, em produtividade. Esse desafio fica ainda maior agora. Vamos ter que discutir muito a qualidade da educação nos próximos anos, até por uma questão de transição demográfica. A partir do momento em que teremos menos jovens, será preciso que eles sejam mais qualificados para sustentar a economia do país.

Mas como a redução da expectativa de vida da população impacta a aposentadoria? Quando esse impacto ficará evidente? Pode ser a partir do ano que vem?
A redução da expectativa aumenta o valor de novas aposentadorias. Esse será o caso daquelas que são calculadas pelo fator previdenciário. Desde que ele foi implementado, houve uma tendência do fator ser maior a cada ano, porque a expectativa de vida subia. A lógica era de que o recebimento da aposentadoria se daria por mais tempo, então, haveria um ajuste (para baixo) no valor. Com a pandemia, devemos observar queda na expectativa de vida em 2020 e 2021. Isso deve afetar o fator previdenciário em 2022 e em 2023, quando as aposentadorias concedidas devem ser maiores. Quem estiver sujeito à regra do fator e puder adiar a aposentadoria, pode se interessar em esperar até esses anos. De forma geral, a pandemia se reflete na Previdência. Há uma queda do número de aposentadorias já concedidas, mas um aumento do número de pensões por morte, e, a médio prazo, de benefícios como a aposentadoria por invalidez. Há um reflexo também na arrecadação, já que, com mais pessoas desempregadas, há menos contribuintes. No caso dos benefícios assistenciais, podemos imaginar, talvez, mais concessões do BPC (Benefício de Prestação Continuada), já que as famílias empobreceram e seus idosos poderiam acessar o benefício.

Dá para as gerações futuras terem otimismo no Brasil? O país sempre foi o país do futuro, mas ele nunca chega…
Tem um prêmio Nobel de Economia que, na verdade, é psicólogo, o Daniel Kahneman. Ele tem uma frase em um dos livros dele marcante, que é algo assim: ser pessimista não é ser inteligente, porque você vai sofrer duas vezes. Portanto, se ele pudesse ensinar alguma coisa para as pessoas, seria que elas fossem mais felizes e otimistas. Quando a situação ruim de fato acontecer, pelo menos não sofreu antes. É importante manter a esperança no Brasil. Conquistamos muitas coisas ao longo dos últimos 30 anos, e o país tem tudo para se livrar das mazelas que ainda nos aflige.

Aprendeu com nossos fracassos?
Acho que é melhor fazer essa questão para responder depois da eleição do ano que vem e ver como é que o país vai lidar com esse legado da gestão da pandemia. Já estamos começando a tratar disso na própria CPI da Covid, no Senado, onde se avalia o que está acontecendo com o Brasil.

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