O teto de gastos, instituído no governo Michel Temer limitando o aumento de despesas à inflação do ano anterior, continua causando polêmicas e poderá ser revisto no início do próximo governo, quando deverá ruir, segundo analistas. Aliás, a revisão das regras fiscais e a maior conexão com o debate econômico global sobre as saídas da recessão provocada pela pandemia da covid-19 não escaparão do debate eleitoral de 2022.
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), à frente nas pesquisas de opinião, vem defendendo a revogação do teto de gastos nas redes sociais. O ministro da Economia, Paulo Guedes, e integrantes da equipe econômica mantêm o discurso de que a regra tem sido respeitada e a agenda econômica “caminha para a consolidação fiscal”. Mas essa emenda que limita as despesas à inflação nunca foi, de fato, cumprida desde a entrada em vigor, em 2017, apenas comprimiu os investimentos públicos. Além disso, a melhora na dívida pública bruta não é resultado de ajuste nas despesas, mas, em grande parte, do benefício da inflação sobre o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) de 2021.
Apesar de ser bem visto pelo mercado financeiro, os defensores das regras fiscais admitem que é preciso a reforma administrativa e rediscutir o arcabouço atual para o teto não ruir. A meta de superavit primário (economia para o pagamento da dívida) vem sendo descumprida desde 2014 e a regra de ouro — que proíbe a União de se endividar para cobrir gastos correntes, como salário e aposentadoria —, burlada com o aval do Congresso desde 2019. Uma das principais críticas à regra do teto, aliás, é a falta de paredes para dar sustentação. Quando essa norma seria colocada à prova, veio a pandemia da covid-19 e o governo precisou criar válvulas de escape: o orçamento de guerra, que permitiu tirar os gastos emergenciais do teto em 2020, e medida semelhante foi adotada neste ano.
“O arcabouço de regras fiscais precisará ser debatido, e a discussão do teto de gastos acontecerá durante a campanha eleitoral, mas não acho que mudem essa regra antes de 2023”, prevê Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da RPS Capital. Para ele, o Congresso poderia minimizar o ruído em torno do teto se criasse subtetos para as principais despesas, como pessoal e encargos, subsídios e investimentos e, assim, “organizar o conflito distributivo”.
“O teto de gastos não se sustenta sem uma reforma administrativa e uma reforma da Previdência integral, porque a de 2019 não foi completa”, avalia o economista Simão Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP). Ele destaca que o sistema atual não vai suportar o aumento expressivo de aposentados sem uma capitalização para complementar o benefício.
“O teto de gastos não tem sustentação e as paredes são as reformas para o controle de despesas”, reforça Silber. Ele ainda avalia que existe uma ilusão de melhora fiscal neste ano, por conta da redução da dívida pública, mas o quadro volta a piorar no ano que vem, pois o PIB vai desacelerar para 2% e, portanto, “não haverá aumento de receita como neste ano”.
Risco de recessão
Grande crítico do teto de gastos, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Universidade de Campinas (Unicamp), não descarta o risco de recessão se essa regra for mantida, a exemplo do que ocorreu entre 2015 e 2016, após as medidas de austeridade fiscal. “Eu considero a regra do teto de gastos uma das coisas mais reveladoras do atraso do debate econômico que está sendo conduzido no Brasil. A preocupação geral é com a trajetória da dívida, mas o endividamento é um ativo de última instância que garante o desenvolvimento da situação fiscal e monetária dos países. Tenho conversado com economistas europeus, e eles ficam de cabelo em pé com essa ideia do teto”, afirma. Ele explica que economia tem movimentos cíclicos e é preciso entender essas flutuações para ter um verdadeiro plano de desenvolvimento econômico. “A teoria econômica está muito atrasada no Brasil. O mundo está discutindo soluções que passam pelo aumento do gasto público e pela revisão de metas, inclusive, de inflação”, acrescenta.
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Nova década perdida
Pelos cálculos do economista Simão Silber, professor da Universidade de São Paulo (USP), mesmo com uma expansão de 5,5%, neste ano, o PIB brasileiro retornará ao patamar de 2011, em termos de renda per capita. “Não existe retomada em V da economia. O PIB não voltará ao patamar de 2019 neste ano, e estamos caminhando para uma nova década perdida em termos de renda”, alerta. Ele lembra que o crescimento “é ilusório”, uma vez que existe um carry over (carregamento estatístico) de 3,7% herdado do PIB de 2020.
Margem adicional apertada
Graças à inflação mais persistente, o governo terá uma folga no teto de gastos em 2022. O Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado em 12 meses até junho, de 8,4%, corrigirá o limite do teto em R$ 124,1 bilhões, para R $1,610 trilhão. Mas a maioria das despesas obrigatórias, como aposentadorias e benefícios, indexada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC) acumulado de janeiro a dezembro, em patamar menor
Pelas projeções do Ministério da Economia, a variação acumulada no ano será de 6,2%, o que poderá criar uma margem extra para o teto de R$ 25 bilhões. Mas analistas do mercado já cogitam uma alta do INPC entre 6,5% e 7% no fim de 2021, acima dos 5% previstos no início do ano.
Logo, esse espaço adicional do teto, em torno de R$ 50 bilhões no início do ano, está encolhendo. Mesmo assim, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o Congresso Nacional deram sinais de que querem aumentar os gastos aproveitando essa folga. Foi o caso do Fundo Eleitoral, de R$ 5,7 bilhões no ano que vem. Combinado com o reajuste prometido pelo presidente aos servidores, que deve custar R$ 16 bilhões, esse espaço adicional será consumido rápido. Resta saber se o governo voltará a criar despesas extrateto no ano que vem, se o presidente quiser ampliar o Bolsa Família e aumentar o benefício para R$ 300.
Pelas estimativas de Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da RPS Capital, essa margem deverá ficar em torno de R$ 20 bilhões, e, portanto, o presidente precisará fazer escolhas sobre onde pretende aumentar os gastos respeitando o teto.
Luis Otávio de Souza Leal, economista-chefe do Banco Alfa, reconhece que o fundão anabolizado, aprovado pelo Congresso com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) quinta-feira (150, ainda poderá ser corrigido por um veto presidencial. “Por enquanto, o aumento do fundão eleitoral foi feito por uma realocação de despesas existentes”, pontua. Contudo, Leal destaca que o teto de gastos é emblemático pela sinalização de que há uma trajetória factível de resultados fiscais, que não resulte em explosão da dívida, mas há problemas nas bases. “Acho que, olhando friamente, a probabilidade maior é de termos algum tipo de ajuste. Mas acho que o mercado pode limitar o estrago, como costuma acontecer. Ou seja, mesmo que o teto resista, não vai ser sem dor”, afirma.
O economista Marcos Mendes, um dos autores do teto de gastos, vem demonstrando preocupação com os riscos que a equipe econômica tem assumido devido à queda na popularidade de Jair Bolsonaro. Em artigo recente, diz que, se o Bolsa Família for ampliado em R$ 25 bilhões, “aparentemente” caberia no teto de gastos, mas a reforma do Imposto de Renda prevendo a tributação sobre dividendos ajudaria a ampliar esse benefício. Resta saber se o Congresso vai concordar e o que exigirá em troca. (RH)
Descaminho
Segundo dados do Tesouro Nacional, em 2020, foram pagos pela União R$ 524 bilhões dos R$ 604,7 bilhões previstos em gastos emergenciais fora do teto para o combate à pandemia. E, neste ano, a previsão de despesas fora da regra constitucional é R$ 127,4 bilhões.