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Antonio Machado
postado em 21/08/2021 22:07

É difícil acreditar o quanto o mundo mudou nos últimos 18 meses, acossado pela primeira grande pandemia deste século, fustigado por mudanças tecnológicas que estão muito além da compreensão e pela transformação do clima e seus eventos cada vez mais assustadores.

Mas não estamos, nesta parte do mundo, muito incomodados com isso ou já estaríamos exigindo, berrando mesmo, para que os governantes se dedicassem ao que importa à segurança e bem-estar de todos nós.

Os chiliques de um presidente que gostaria de ser amado pelos que o elegeram mais para punir políticos mais-do-mesmo que por amor a seu jeito debochado, nos surpreendem e nos distraem, levando-nos a perder tanto o contato com as inovações que são oportunidades e ameaças, quanto com a realidade difícil de um país subdesenvolvido.

Pegue-se como exemplo o importante setor empresarial em termos de produto econômico, de impostos arrecadados e de empregos gerados – a indústria automotiva. Ela está mudando e nunca mais será a mesma.

Vai-se o motor a combustão, vem o motor elétrico – e, com ele, uma revolução com múltiplas implicações. Um sedã elétrico usa menos da metade das peças habituais. A cadeia de produção será encurtada. E o que será do petróleo? Do etanol? Do comércio de carros, se outro viés chegando é o do aluguel por tempo de uso, não a venda final?

Comparados a tais eventos em curso no mundo, e carro elétrico não é novidade no Brasil, os pesadelos de Bolsonaro com os ministros do STF, com a CPI, o Lula, Maia, a vacina do Doria são sonhos de bebê. Ele tem algo a dizer sobre isso? Não deve ter. Se tivesse, estaria correndo para licitar as reservas do pré-sal enquanto há tempo.

Pressa? O leilão de frequências do celular 5G ainda está sem data, enquanto consórcios internacionais se formam para desenvolver o 6G.

A digitalização de processos, primeira etapa para novas formas de administração pública e privada, além de abrir portas para um leque de negócios que alguns ainda acham ser coisa de ficção, se arrasta mais que jogos da série B do Brasileirão. Se até a urna eletrônica, que é um primo-irmão da digitalização, foi criminalizada por uma conspiração de lunáticos, o que esperar do futuro próximo do país?

A questão a elucidar é se estamos diante de uma encruzilhada ou se já entramos no caminho sem volta das nações fracassadas.

O novo não espera ninguém

As mudanças que assistimos em tempo real entusiasmam e assombram. O que importa é a atitude que tomaremos, já que não se trata mais de escolha. O novo toma o lugar do velho e não espera ninguém.

Voltemos ao setor automotivo, semelhante ao que acontece em todas as atividades, como bancos, cujas agências desaparecem aos poucos, substituídas por aplicativos de celular; os hospitais, com as UTIs domiciliares, cirurgias à distância operadas por robôs, o celular como central de diagnósticos; a inteligência artificial auxiliando os tribunais; a carne vegetal; e por ai vai. A rotação é sem fim.

Apesar de certo ceticismo no país quanto ao veículo elétrico, VE, e iniciativas digitais (direção autônoma), os relatórios das cinco grandes montadoras da Europa e EUA, segundo monitoramento da agência Bloomberg, indicam que a decisão já está tomada.

A Volks anunciou que 70% de suas vendas na Europa e na China e 50% nos EUA serão de veículos com motor elétrico até 2030; na Mercedes, metade da produção já em 2025; a Stellantis, fruto da fusão da Fiat e Chrysler com a Peugeot, terá percentagens semelhantes até 2030; GM prevê um milhão de VE vendidos em 2026; Ford, 40% até 2030.

O que nos conta a Anfavea?

Tais projeções deverão crescer, a julgar pelos valores investidos em pesquisas e novos maquinários. A Volks investiu US$ 28,7 bilhões em 2020 e investirá US$ 83 bilhões em cinco anos, dos quais mais da metade apenas em motor elétrico e sistemas digitais. Nas outras, os gastos vão de US$ 30 bilhões (Ford) a US$ 46 bilhões (Mercedes).

Semana passada, a Anfavea, associação que reúne os fabricantes de veículos de passeio e caminhões, divulgou estudo em que deixa claro que o VE chegou para ficar, mas sem compromisso quanto a prazos nem valores. A sugestão é que o setor espera um posicionamento oficial de governo quanto a eventuais incentivos e normas regulatórias.

Obviamente, uma frota eletrificada demandará redes de recarga e um serviço robusto de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica — hoje também em causa pela baixa capacidade das usinas geradoras, se a economia voltar a crescer à taxa de modestos 2,5% ao ano, e sobretudo pela crise hídrica, que se agrava a cada ano.

A ignorância não é destino

Tais eventos estão no noticiário ora como fenomenologia (“olha que legal esse carro sem motorista”), ora como ameaça (reservatórios e rios secando). Não formam um desenho coerente das rupturas que vão abalar empresas, arruinar empregos, criar multidões de ressentidos.

A ignorância leva a decisões questionáveis, como o Congresso votar a privatização da Eletrobras inserindo na lei a obrigatoriedade de o Estado Nacional comprar a energia de usinas a gás que não existem e serão instaladas em regiões sem gasodutos. Gás está na contramão das emergências climáticas. Quem pagará por isso? Nós, quem mais?

A energia eólica e solar, em contraponto, é mais em conta, limpa e rápida para começar a funcionar (um ano, contra cinco das termos). Moral: tecnologia não é tema para lobbies políticos e econômicos.

O fascinante das grandes rupturas tecnológicas é que elas são, ao mesmo tempo, ameaça e chance de recuperar o tempo perdido. Trata-se de entrar na maratona emulando seus líderes. Outros estão fazendo.

A Indonésia, maior nação muçulmana do mundo, partiu mais atrás do que já estivemos e arrancou com e-commerce em expansão, uma base de usuários de Internet crescendo rápido e uma miríade de startups de inteligência artificial. Os “novidadeiros” têm o suporte de ensino vocacional tecnológico e puxam setores tradicionais, da indústria à agricultura, por meio de políticas públicas. A meta é ter em 2030 o 6º maior PIB do mundo, onde estávamos antes de começarmos a decair.

Se dessemos atenção ao desenvolvimento, certamente não estaríamos hoje acabrunhados, tentando entender onde e como foi que erramos.

 

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