Sequela das badernas
Se febre, azia e taquicardia são avisos de que há algo errado com o corpo, inflação costuma ser sintoma de desgoverno e desorientação do sistema político que o circunda. A volta da inflação combina, no Brasil, barbeiragens políticas com imperícia fiscal e monetária.
A inflação é danosa especialmente para os mais pobres, cujo número voltou a crescer neste governo, mas ela indica também a ausência de planejamento e governança do Executivo, explicitada pela monumental incompetência no enfrentamento da pandemia, e de qualquer coisa que implique coordenação pelo Estado de estratégias de desenvolvimento.
Sem convencimento dos investidores e empreendedores de que há um ciclo forte e longo de crescimento, a economia não decola, estagna, como tem sido desde a recessão do biênio 2015-2016. Na falta desse pressuposto, a expectativa é de que um crescimento vigoroso acabará frustrado pelo aperto do gasto público e da taxa Selic operada pelo Banco Central para esfriar o consumo e as importações.
A economia agradece ao bom desempenho exportador do agronegócio e de minérios. Ambos equilibram as contas externas, juntamente com os ingressos de capital atraídos pelos maus motivos dos juros altos e a pechincha dos ativos que orbitam as atividades extrativistas.
Mas, sem investimento em indústrias competitivas no mercado global, cuja pré-condição é a inovação tecnológica, não se tem um setor de serviços pujante, pois dependente do gasto corrente e de crédito, que reagem em prazo curto aos programas de austeridade. E serviços são os grandes empregadores urbanos e geradores de renda.
De certo modo, estamos à mercê da maldição de países petroleiros, que se acomodam com a riqueza natural, o agro para nós, sem cuidar da diversificação produtiva que impulsiona o dinamismo do trabalho.
O que esperar de um presidente que outro dia lamentou não ter como enfrentar sozinho a inflação? Culpou os governadores, malandramente ignorando o monopólio federal da emissão de moeda e crédito.
Patetadas em vez da Disney
A pandemia chegou com este pano de fundo, agravado pela tentativa pueril do governo de inflar o crescimento desvalorizando a moeda. A inflação disparou depois que o câmbio desandou contra o real entre o fim de 2019 e início de 2020. O ministro Paulo Guedes celebrou o que chamou de novo regime — “câmbio para cima e juro para baixo”.
Teve até um de seus gracejos mais infames, ao dizer que “empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada”. O real levado às cordas danou foram os preços, com a reabertura da economia graças ao aumento da vacinação. Foi-se a Disney e vieram as patetadas.
Não fosse o roteiro de agressões e desaforos encenado teatralmente todos os dias por Bolsonaro e a inflação, o desemprego, a volta da fome, as milhares de famílias que perderam emprego e renda em meio à pandemia morando em barracas nas ruas, como se vê até em bairros nobres de São Paulo, estariam ocupando as atenções do noticiário.
Essa é a realidade que os atos que ele mesmo convocou para 7 de setembro tentarão encobrir. Difícil que consiga. Por isso, apela a absurdos, como na sexta-feira: “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Daí tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”. Pois é...
Difícil é encher o “saco”
Não é fácil encher o saco, servindo-se da expressão de Bolsonaro, quando a inflação acumulada em 12 meses até agosto chegou a 9,30%, contra 2,44% um ano atrás, na métrica do IPCA-15. Notícia ruim não falta, embora velha, como a crise hídrica conhecida desde o apagão de 2001 e, não obstante, tratada com o remendo das termelétricas.
A tarifa vai continuar subindo — afinal, segundo Guedes, “qual o problema de a energia ficar um pouco mais cara” — sem descartar o risco de racionamento de eletricidade e mesmo de água em regiões populosas do Sul e Sudeste. Contenção via preço talvez não baste, e física, implicará outro baque nas fragilizadas cadeias produtivas.
Para a indústria de transformação, sem expansão notável há vários anos e dependente da importação de semicondutores, hoje escassos no mundo, não há margem para novos custos como os da moeda depreciada. E isso com renda corroída pela inflação, crédito onerado pela alta de juros e o emprego ainda fraco. Parece a quadratura do círculo.
O crescimento econômico deste ano é forte na aparência, já que se trata de reposição das perdas da crise de 2020. O que se prevê para 2022, tipo 1,5% de avanço, tem mais a ver com a estagnação da indústria desde os anos 1980 e da demanda agregada depois de 2014.
O futuro é aqui e agora
Espantoso é que a agenda política esteja dominada pela encenação patética de radicais delirantes apoiados por ruralistas e traders de papéis. Grupos neofascistas há na borda de todas as sociedades ocidentais, mas só ocupam o centro do palco com apoio do capital.
O empresariado de expressão está longe desses extremismos, ou não haveria a tentativa de viabilizar quem desloque Bolsonaro e tenha chance contra Lula. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, está na área, promovido por Gilberto Kassab, líder do PSD. O governador João Dória transita no mesmo pedaço. Mas falta algo a eles todos.
As ideias econômicas estão escassas e, quando há, são as mesmas do século passado, que advogam a ortodoxia do mercado. Isso quando os novos conservadores do Partido Republicano de Trump defendem o fim do reaganismo e a promoção do ativismo na linha do New Deal.
Nada surpreendente: o futuro tem chegado ao Brasil quando já virou passado no mundo. Mas, nesta década de grandes rupturas tecnológicas, o futuro é aqui e agora. Essa é a questão a formular e implantar já nos primeiros dias de 2023. Tipo o quê? Digitalização maciça do setor público e das pequenas e médias empresas nacionais, apoio à escalabilidade empresarial, foco na educação fundamental, no ensino profissionalizante tecnológico e na pesquisa aplicada, a geração de emprego e renda sem receio fiscal. Tudo isso é só para começar.
O presidente eleito da Fiesp, Josué Gomes da Silva, dedica-se a pensar tal projeto. Ou se vai por aí ou a crise que nos consome não terá fim.
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