Em meio à profusão de notícias e “narrativas”, como hoje se diz, emanadas de Brasília, há algumas poucas certezas. A primeira é que a economia não vai decolar ano que vem, ao contrário do que diz o ministro da Economia, Paulo Guedes, e repetiu em Washington, na assembleia anual do FMI. Se ele estivesse certo, errado estaria o Banco Central.
Com a inflação ganhando força, sobretudo pela depreciação cambial que começou no fim de 2019 e foi recebida com encômios por Guedes, porque impulsionaria as exportações e acabaria com as viagens das domésticas à Disney – “uma festa danada”, disse ele em fevereiro do ano passado, talvez por achar, como Bolsonaro que a covid-19 fosse só uma “gripezinha” –, os senhores da economia, distraídos, não viram as sequelas sobre a inflação, que já passa de 10% em 12 meses.
É o que levou o BC a voltar a inflar a Selic – com atraso, segundo os defensores do capinancismo brasileiro – para encarecer o crédito e, assim, esfriar a demanda, portanto, o crescimento econômico. Mas também para atrair os dólares vadios que vagam o mundo a procura de barganhas, não de oportunidades de investimentos de longo prazo.
Deixando mais claro: o governo age, por meio do BC, para esfriar a economia, não para fazê-la decolar, crescer em V, como Guedes diz.
Quanto mais dólares chegarem, mais o real poderá apreciar-se – e menor a pressão inflacionária. Os preços de alimentos relevantes e dos combustíveis seguem a paridade internacional, e lá fora eles estão em alta. Moeda depreciada e preços internacionalizados formam a combinação demoníaca que explode a carestia, da carne a gasolina.
Tem de ser assim? Não, ao menos não tanto quanto tem sido.
O mesmo boom de commodities que felicitou os dois governos Lula, graças ao apetite da China por grãos, proteínas e minérios, voltou parcialmente em 2020, azeitando as relações de troca do país, que significam preços melhores de exportações vis-à-vis de importações.
Pera aí! Se nossas commodities são competitivas, se os seus preços estão bombando no mundo, se a China importa o que estiver à venda, se as exportações batem recordes (com as commodities representando 70% do total exportado, dos quais 44% de soja, minério de ferro e petróleo, contra ralos 33% de manufaturados, que já foram mais de 60% até 2003), por que, diante dessa configuração tão confortável, o dólar não cai no Brasil? Porque há muitos esquecidos e distraídos.
BC tem de ser temido
Em 2006, quando o ingresso maciço de divisas valorizava o real, ameaçando a indústria e as exportações, o governo tomou a decisão adequada à ocasião. Além de o Tesouro se endividar para comprar o excesso de dólares, rompeu com uma regra de 1933 ao permitir que parte das cambiais dos exportadores pudesse ficar no exterior.
Tais ações sancionadas pelo então presidente Lula deram ao país o que nunca tivera: reservas de divisas geridas pelo BC superiores à dívida externa soberana. Nunca mais houve crise cambial, principal causa de insolvência na América Latina, sendo Argentina a campeã.
Hoje, as reservas somam US$ 356 bilhões, das maiores no mundo, e, em tese, deveriam fazer o BC ser temido pelos especuladores.
Se operasse com derivativos cambiais no mercado futuro, a turma da arbitragem de taxas de juros e moedas precisaria ter muito sangue frio para mexer com o real. Mas, comportado, o BC aplica o grosso das reservas em títulos dos EUA, que rendem quase nada.
O dinheiro dos exportadores lá fora também está esquecido, embora totalize US$ 46 bilhões na contagem recente do BC. Se chamasse de volta parte destes fundos, o real estaria ao redor de R$ 4,50 por dólar, a cotação considerada justa pela maioria dos especialistas.
Ziquizira do câmbio?
O problema de muitas distorções na economia se deve a regras mais ideológicas que técnicas, assentadas na primazia do mercado, apesar de conspirar contra os interesses da economia real e da população.
Por autoimposição, o BC não opera conforme seus pares dos EUA, da Europa do euro, do Japão, da Inglaterra passaram a operar desde a crise de 2008. O Congresso aprovou com o tal “orçamento de guerra”, que permitiu o governo enfrentar a pandemia gastando acima do teto de gasto, a permissão para o BC recomprar papéis de dívida.
Nos EUA, do fim de 2019 até o trimestre passado, o Tesouro captou US$ 5,4 trilhões com seus títulos, dos quais o Fed absorveu mais da metade, US$ 3 trilhões. Se o BC operasse assim, parte da dívida que o Tesouro emitiu para financiar os gastos excepcionais na pandemia, como o auxílio emergencial, não viria a mercado. O BC não teria de recomprá-la por meio de “operações compromissadas” de até 90 dias, que pressionam os juros e dão corda aos que falam de “precipício fiscal”, como se o país estivesse à beira da insolvência.
A dívida bruta de 82% do PIB desce para 61%, abatendo-se a parte das reservas em dólares do BC. Chega-se assim ao conceito de dívida líquida, cujo nível não é nada anormal comparado aos das economias emergentes e desenvolvidas. Por que, então, a ziquizira do câmbio?
Recado aos distraídos
O país tem problemas fiscais sérios, mas devido à péssima alocação dos dinheiros públicos, sequela da captura do orçamento pela elite da burocracia e por partidos que alugam apoio a presidentes fracos.
Não surpreende que milhares tentem a vida política e quem se elege cuida de reeleger-se e traz a família para a roda. Bolsonaro é esse político padrão, assim como a maioria que o apoia no Congresso. Não acham dinheiro para ampliar o Bolsa Família e para dar absorventes a mulheres pobres, mas tem para as emendas e o “orçamento secreto”.
São tantas distrações que se “esquecem” de que uma economia aberta exige estoques reguladores da cesta básica, como arroz e feijão, e do que tem preço dolarizado, como gasolina, diesel, carne, milho. Isso há nos EUA. E havia aqui até que o governo passado os reduziu ao mínimo para poupar um troco no orçamento e dar poder de mercado à Petrobras, então combalida, e ao agroexportador. Deram a isso o nome de reformas liberais...
Distrações. Amnésias. E erros, como rebaixar o real, esperando impulsionar o crescimento estagnado exportando o que dispensa esteroide cambial. A indústria foi lesada, pois opera integrada às cadeias produtivas globais, e a inflação acordou. É a nossa crise. Sem compreendê-la, não há como resolvê-la.
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