ENTREVISTA

Salto: 'O teto não é a última maravilha do mundo, mas tem de ser respeitado'

Especialista demonstra preocupação com o desmonte do arcabouço fiscal e classifica como "falácia" a desculpa de ampliar o Bolsa Família para justificar o estouro do teto de gastos. Para ele, governo poderia ampliar programa sem "dar cavalo de pau" nas regras fiscais

O especialista em contas públicas Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, considera uma “falácia” o argumento do governo de que, para criar o benefício de R$ 400 para os mais pobres, é preciso estourar o teto de gastos.No entender do economista, o governo está indo pelo “pior caminho”e isso deverá agravar o cenário econômico, travar o crescimento e elevar os juros e custo da dívida pública. “Isso é muito claro para quem faz contas”, frisou. O diretor-executivo da IFI também não poupou críticas à Proposta de Emenda à Constituição que adia o pagamento de precatórios. “A verdade é que o teto de gastos morreu e, agora, o desafio para 2023 será ainda maior. Reconstruir tudo do zero”, lamentou. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio:

O senhor se opõe aos movimentos do governo para lançar o novo Bolsa Família, destruindo o teto de gastos. Por que essa regra é importante, já que o senhor criticou o teto anteriormente?

A questão central não é mudar o teto. As instituições e regras de contas públicas passaram por mudanças importantes desde os anos 1980. Ocorre que regras fiscais, sozinhas, não fazem verão. É preciso compreender que uma regra, uma legislação, só faz efeito quando há também o compromisso político e das elites dirigentes em relação à responsabilidade fiscal. O teto de gastos tinha problemas de desenho desde o início, mas isso não anula o efeito muito positivo que proporcionou do ponto de vista da fixação de uma restrição orçamentária efetiva e da redução do custo médio da dívida. Discutir o arcabouço fiscal, mesmo o teto de gastos, não é o problema. O que se está fazendo agora, no entanto, é uma mudança oportunística para abrir espaço orçamentário à realização de despesas em ano eleitoral. Pelas contas da IFI, serão R$ 94,9 bilhões, quando somados os efeitos do calote nos precatórios e do cálculo retroativo do indexador do teto. A verdade é que o teto de gastos morreu e, agora, o desafio para 2023 será ainda maior. Reconstruir tudo do zero.

O mercado reagiu mal à nova investida do governo. Os críticos dizem que essa regra é draconiana e impede investimentos sociais. Isso procede?

Não. O teto impõe escolhas. Pode-se imaginar que precise ser alterado, a médio prazo. Mas não foi o teto que impediu o aumento do Bolsa Família para 2022, tampouco os gastos emergenciais em 2020 e 2021. Ao contrário, a válvula de escape do crédito extraordinário permitiu um gasto de R$ 524 bilhões, no ano passado, e permitirá outro de cerca de R$ 134 bilhões, em 2021. No ano que vem, o corte de gastos discricionários e de emendas parlamentares poderia financiar um incremento importante no Bolsa Família. A IFI mostrou isso, em mais de uma ocasião. A sanha para gastar com outras coisas foi maior, no entanto, e agora estamos desancorados. O teto não é a última maravilha do mundo, mas a regra tem de ser respeitada, sobretudo quando está na iminência de ser rompida.

Quais os impactos na economia se o teto de gastos deixar de existir?

O teto exerce hoje a função de ancoragem das expectativas. Com a manobra da PEC 23, ele deixa de existir, perde suas funções, como aconteceu com a meta de resultado primário no governo Dilma. É o mesmo filme, e o final é conhecido. O efeito será o aumento dos juros e a queda do crescimento econômico. Quem pagará a conta serão os brasileiros e brasileiras mais pobres. Os gastos sociais que estão sendo prometidos amenizarão esses efeitos, mas temos pela frente um ano muito ruim. O populismo vai ganhando corpo. Do ponto de vista da IFI, vamos continuar com o trabalho de alerta a respeito desses riscos e mostrando os custos derivados de um cenário mais pessimista. Infelizmente, acertamos o cenário. Há anos temos alertado para os problemas e riscos associados ao teto de gastos. A toada de desmonte do arcabouço fiscal ganha força com a PEC. Não é à toa a saída de membros da equipe técnica do Ministério da Economia. E com razão.

O que acha do argumento do governo de usar o novo Auxílio Brasil para justificar o descumprimento da regra do teto de gastos?

É uma falácia. O Bolsa Família poderia ser ampliado em R$ 14 bilhões, com corte de despesas discricionárias e o espaço natural do teto no ano que vem (pois há despesas crescendo abaixo da inflação). Além disso, seria possível corrigir o erro de contabilidade dos precatórios do Fundef (Fundo da Educação dos anos 1990) e abrir espaço adicional de R$ 16 bilhões. Mas o problema é que essa estratégia não permitiria qualquer espaço para emendas de relator-geral ao Orçamento. Aí é que está. A alteração foi motivada por outros fatores que não a questão social. Esta poderia ser resolvida com uma gestão adequada, dentro das regras do jogo, sem abandonar o teto de gastos e sem dar calote nos precatórios. A opção foi feita, registre-se, pelo pior caminho. Não era inevitável. Isso é muito claro para quem faz contas.

O senhor também critica a PEC dos Precatórios. Quais os riscos dessa proposta?

A PEC dos Precatórios, que agora abarcou também a mudança retroativa da correção do teto, no mesmo texto, é a pior medida de política econômica da história recente do país. A limitação do pagamento de uma despesa obrigatória é um sinal de que despesas podem simplesmente não ser pagas, postergadas, adiadas. Alguém poderia perguntar: se o precatório pode ser adiado, por que não fazer o mesmo com o décimo terceiro dos pensionistas? É uma loucura, e isso já é precificado pelo mercado, junto com o abandono do teto de gastos.

O governo negligenciou o monitoramento dos precatórios?

Sim. A AGU informa ao governo os riscos de cada precatório, bem antes de estourarem. Tanto é assim que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Balanço Geral da União trazem informações sobre esses passivos contingentes. O problema é que são informações agregadas, que não permitem o adequado escrutínio. O governo deveria ter negociado os precatórios antes de explodirem. Não fez isso e, agora, alega ignorância. Não há como comprar essa tese. É furada.

O ministro Guedes criticou vários economistas, como Pastore e o senhor. A que se deve tanta agressividade?

Sinceramente, não sei. É uma pena que o ministro Paulo Guedes não tenha reconhecido o papel importante da IFI. Pessoas passam e instituições ficam. Vamos completar cinco anos de funcionamento em novembro, com reconhecimento dos economistas do mercado, dos parlamentares, dos técnicos do Poder Executivo, da imprensa e dos organismos multilaterais. O ataque a Affonso Celso Pastore, o maior economista do Brasil, a meu ver, segue a mesma linha de tentar desqualificar os críticos, aqueles que estão apontando, há muito tempo, para os riscos e que agora mostram os resultados da sua materialização, com o fim do teto de gastos. O mesmo fez com os ex-ministros Mailson da Nóbrega e Henrique Meirelles, que têm uma folha extensa de serviços prestados à nação.

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