Em mais uma daquelas votações típicas dos últimos anos, em que os interesses nacionais vão às favas, vis-à-vis a escassez de fundos, para servir aos viciados em extrair rendas do exaurido erário, uma maioria de deputados, forjada por dinheiros que a rigor não existem, pretendem rasurar a Constituição sob o álibi da atenção aos pobres.
Reuniram-se para votar o projeto que vai bancar o Auxílio Brasil, codinome do Bolsa Família, que o governo matou para dar a Bolsonaro a paternidade do que Lula criou em 2003, a pretexto de que pagará mais, R$ 400 ao mês contra média de R$ 190, e atenderá 17 milhões de famílias, três milhões acima do número hoje assistido.
Soa decente não fosse a origem do dinheiro, que virá do calote de dívidas da União transitadas em julgado, e a motivação dos aliados de ocasião de Bolsonaro desde que ele passou a temer o impeachment e se amasiou a seus camaradas do Centrão — o grupo de partidos que apoia quem atenda seus fins pecuniários e dos lobbies que servem.
Os 312 deputados, somente quatro acima do mínimo para aprovar uma emenda à Constituição, pescados entre vários partidos na madrugada de quinta-feira, 4, para votar o projeto que libera o governante a dar um beiço nas dívidas chamadas de precatórios, puxaram a descarga do mito da terceira via, preterida pelo "mito" lacrador, e deformaram a mitologia do teto de gastos. Tudo pelos pobres, eles alegaram.
Nem pobreza nem desenvolvimento estiveram em questão na Câmara, e continuarão não estando quando os deputados voltarem a se reunir para votar em segundo turno a PEC dos precatórios, ou do calote, como os críticos se referem ao mais novo esgarçamento do orçamento de receitas e despesas federais, que está deficitário desde 2014.
A tese básica: deputados do Centrão se reelegem e elegem parentes e agregados distribuindo fundos públicos com as tais emendas à lei orçamentária em seus rincões eleitorais. Convenceram Bolsonaro de que ele só tem chances se fizer o mesmo, aliciando o eleitorado pobre, que representa mais de 70% dos votantes. Mas emendas já são obrigatórias, as individuais e as de bancadas. E antes tinha de ser derrotado na Câmara o grupo de Rodrigo Maia, avesso a tais ardis.
Recuperou-se, então, o velho instrumento das emendas de relator, ou RP9, que caíra em desuso pelo histórico de escândalos. Equivalem a quase um Bolsa Família, R$ 16/20 bilhões, e servem ao chefe da casa para aliciar parlamentar uberizado. É o mensalão do bolsonarismo.
Pedem muito e fazem pouco
Foi assim que 15 dos 24 deputados do PDT se deixaram seduzir pelos cifrões do presidente da Câmara, Arthur Lira, votando o que serve à reeleição de Bolsonaro, não a Ciro Gomes, candidato do partido. Os do PSDB, em cujas gestões foram aprovadas a Lei de Responsabilidade Fiscal e o Plano Real, exceto 10 deputados paulistas, deram banana a João Dória e Eduardo Leite, os seus presidenciáveis.
Os deputados desses partidos vão manter-se fiéis ao RP9 ou a seus presidenciáveis? E Sérgio Moro, que vai filiar-se ao Podemos com o discurso lavajatista, apesar de a bancada do partido na Câmara ceder aos apelos de Bolsonaro, seu rival no campo da extrema-direita?
Muito complexo. Costuma-se dizer que política não é para amadores. Sim, mas ética e boa intenção é o que se espera dos profissionais — precisamente o que forma a média dos melhores parlamentos, como os da Inglaterra, dos EUA, Japão, Alemanha, até os da Índia e Coreia.
Não é um presidente fraco que fortalece o parlamento, é um governo com propósito maior. Ele sempre será o do bem-estar geral, função do crescimento inclusivo movido a investimentos em educação eficaz, na infraestrutura, na produtividade das empresas, atento à inovação tecnológica. O 5G licitado só agora deslanchou no mundo em 2018 e já é padrão em 65 países. É um dos exemplos de nosso atraso.
Nossos governantes e políticos pedem muito e entregam pouco.
Pobreza é álibi eleitoral
Para conter tais investidas sobre o Tesouro Nacional, os próprios parlamentares, em geral influenciados por presidentes com senso de Estado, impõem limites ao trato orçamentário. Foi o caso da "regra de ouro", inserida na Constituição de 1988, que veda a emissão de dívida para custear gasto corrente. E da Lei de Responsabilidade Fiscal, de 2000, com metas trienais e a regra de que nova despesa implica o corte de outros programas ou o aumento de receitas.
A última do manual de "boas regras" fiscais é de 2016, com o rito na Constituição do teto de gasto, definido como o total daquele ano corrigido pelos próximos 20 anos, com revisão em 2026, pelo IPCA de 12 meses até junho (meio de ano para que a discussão do Orçamento do exercício seguinte tenha o parâmetro da inflação conhecido).
Na lei orçamentária anual (LOA) proposta para 2022, cabe tudo que é obrigatório ao governo (deficit do INSS, salários do funcionalismo federal, aposentadoria dos inativos etc.), além do Bolsa Família. O pagamento de R$ 89 bilhões de precatórios é um ponto fora da curva, mas, para isso, há a exceção do crédito extraordinário. Ou com alguma interpretação pagá-los fora do teto. Por que rasurar tantas regras?
Para ter dinheiro para as tais emendas secretas e para obras que o patronato do Centrão anseia e Bolsonaro quer exibir, então, arma-se uma PEC, que nem fala do Auxílio Brasil, e todos fingem demência.
Os cínicos e os realistas
Mais esdrúxulo é trocar o Bolsa Família, relativamente de baixo custo, elogiado em todo o mundo, que existe há 18 anos, por outro que vai valer só até o fim de 2022. É, acaba depois das eleições.
Duplamente escandalosas são as sequelas do beiço dos precatórios, se a Câmara não barrar a estrovenga ou o Senado ignorar seu papel de casa revisora. O ataque ao real e aos juros, como habitualmente ocorre a cada véspera de eleição, vai acentuar o que está em curso, avariando o controle da inflação e agravando o risco de recessão.
Parece evidente, a esta altura, que emenda secreta, urdindo uma maioria parlamentar arrendada, e tratoraço na condução legislativa são um perigo para o país. Tanto quanto um sistema parlamentar que exige amarras orçamentárias contra si mesmo, assim como alcóolatra evita chegar perto de um bar. Ou a coisa é seria, ou não funciona.
É a disfuncionalidade da governança do Estado e da representação eleitoral que trava o desenvolvimento de mão dadas com liberais de festim, estes que falam de "Estado inchado", não de sua eficácia.
Tal embate, que é ideológico, surgirá na campanha eleitoral e se dará entre cínicos, que alegam preocupação com a fome, e realistas, chocados com a estagnação econômica duradoura e tanta demagogia.
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