País desgovernado

Correio Braziliense
postado em 20/02/2022 00:01

A tragédia em Petrópolis, com encostas desabando pelas chuvas e rios transbordando, foi a reedição de uma série de catástrofes registradas na cidade histórica em 1970, 1995, 1998, 2011, e a repetição de outros eventos extremos este ano, no sul da Bahia, em Minas Gerais, em São Paulo, com centenas de mortos, afora os nunca encontrados, milhares de desabrigados e a mesma reação apalermada e teatralmente compungida das autoridades relapsas.

Eventos extremos, climáticos ou não, são comuns no mundo desde sempre e vêm se agravando nos últimos anos pela mudança do clima. Mas uma coisa é um ciclone arrasar áreas urbanas bem definidas no meio-oeste dos EUA, outra é um temporal desabar moradias em áreas de risco erguidas à revelia das autoridades omissas, muitas vezes pela ação de organizações criminosas acumpliciadas com políticos e funcionários públicos corruptos. Assim está o Rio, esse canário de mina a anunciar o que está acontecendo em todo o país.

Essa gente se aproveita de uma população sem emprego nem renda que mora onde lhe é permitido, não onde gostaria. Faltou-lhe "visão" por morar em áreas de risco, disse o presidente Bolsonaro depois de sobrevoar áreas arrasadas pela chuva na periferia de São Paulo no início do mês. Não sabe de nada. O presidente padece de um caso peculiar de cegueira que acomete os despreparados e os alienados.

Esse é o Brasil desprezado, não ignorado, pelos poderes muito mal constituídos. A resposta imediata aos desabrigados é a prova de que não estão nem aí com a desventura evitável de seus eleitores.

Eles perderam o pouco que tinham e o governo anuncia como se fosse um grande favor a liberação dos depósitos do FGTS dos vitimados. Não é ajuda, é engodo. O FGTS pertence ao segurado, não à CEF, gestora em nome do assalariado. Significa que cada um que se vire por si.

A "cegueira" ou cinismo ou ambas as coisas, manifestadas sem que a imprensa faça qualquer ressalva, omite que morador de área de risco em geral tem emprego precário, não dispondo de crédito do FGTS - um benefício pago pelo empregador em contratos formais.

"O Estado tem sido solapado no Brasil", conclui seu artigo no UOL o engenheiro e professor da USP José Luiz Portella sobre o ocorrido em Petrópolis. Acrescenta: "foi outra manifestação da Independência inacabada no ano de seu bicentenário".

Desmanche já tem 40 anos

O país se desmancha desde que o modelo de desenvolvimento movido a empréstimos externos ruiu nos anos 1980, coincidindo com a ascensão da ideologia do Estado mínimo, não do estado eficiente e solidário.

A ruína foi levada pela máxima do então presidente Ronald Reagan segundo a qual "governo não é solução, governo é problema", e da premiê inglesa Margareth Thatcher, para quem "a ganância é um bem".

O neoliberalismo, como ficou conhecido, é a ideologia que expandiu a pobreza estampada no noticiário, além da classe média pauperizada que gerou as monstruosidades que lideram os movimentos de extrema-direita limítrofe do fascismo no mundo. Eles sequestraram as bases do liberalismo clássico, elevando-o à condição de valor absoluto - manifestado quando condenam em nome da liberdade de pensamento a exclusão das redes sociais de quem faz proselitismo do nazismo ou chamam de tirania as regras para conter a pandemia -, desde que não se toque na liberdade absoluta da financeirização da economia.

O planejamento econômico e social, que não significa estatização, vem sendo manietado no mundo há 40 anos, inclusive no Brasil, sem que tais políticas tenham trazido desenvolvimento nem a expansão do setor privado. Contraditoriamente, criaram as condições para a oligopolização na economia e proteção aos negócios acomodados.

As causas da estagnação

É tempo de discutir a estagnação produtiva brasileira a partir das análises de evidências, método da escola mainstream de economia, em geral usadas como argumento contra quem a contradiga. Ok.

Nos EUA, por exemplo, deveria constar da disputa comercial com a China os números da relação bilateral - evidência para apurar quem tem razão. Em 2021, a balança comercial com a China foi deficitária para os EUA em US$ 355 bilhões. O que parece fruto do mercantilismo chinês, porém, tem mais a ver com as operações americanas na China.

Os EUA exportam anualmente US$ 200 bilhões em bens e serviços para a China, segundo Dan Wang, da consultoria Gavekal. Mas, conforme o Bureau of Economic Analysis (o IBGE dos EUA) o número é ofuscado pelos US$ 600 bilhões de bens produzidos e vendidos pelas empresas dos EUA na China, de carro elétrico da Tesla ao iPhone da Apple.

"A crítica dos EUA de que 'a China roubou empregos' no país parece uma crítica ao próprio sistema econômico americano. China investiu na competitividade doméstica, tornando-se atraente para as empresas americanas, que se deslocaram para lá. Enquanto isso, o governo dos EUA pouco fez para ajudar os trabalhadores descontentes em casa."

A nova direita do partido republicano, liderada por senadores como Marco Rubio, Mitt Romney e Josh Ashley, questiona por tais coisas o que chama de "dogmatismo dos mercados" e se diferencia de Trump ao apoiar a reindustrialização ativa por meio de política industrial.

A voz do Brasil moderno

A retomada do desenvolvimento como primeira prioridade da política, em sentido amplo, reentra no Brasil pelo novo presidente da Fiesp, Josué Gomes da Silva, um empresário com indústrias, ao contrário da maior parte da representação empresarial no país, e sem receio de discordar do pensamento majoritariamente ortodoxo dos economistas.

Na primeira entrevista no cargo, ele disse que o neoliberalismo e sua sequela da financeirização exacerbada das relações econômicas vêm sendo questionados em todo mundo, e nos EUA tanto pela direita não trumpista dos Republicanos, como pelos Democratas de Joe Biden. Josué chega com forte apoio empresarial e a atenção dos políticos.

"Vejo todo dia aqui na avenida Paulista (sede da Coteminas, o seu grupo industrial, e da Fiesp) famílias morando em tendas", disse. "Não podemos ser omissos com isto", alertou, relacionando a miséria com a série de tragédias como a de Petrópolis, flagrantes da governança pública que perdeu seu propósito. Volto ao tema outro dia. Por ora, fico com a esperança de que o Brasil moderno acordou.

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