CRISE NA EUROPA

Petróleo a US$ 100 e trigo em alta: guerra na Ucrânia piora cenário para inflação no Brasil

Até o dólar, que havia fechado a quarta-feira cotado a R$ 5, no menor valor desde junho de 2021, inverteu a tendência, e já é negociado acima dos R$ 5,10

BBC
Thais Carrança - Da BBC News Brasil em São Paulo
postado em 24/02/2022 19:36 / atualizado em 24/02/2022 19:36
Escalada da crise na Ucrânia pode resultar em alta dos combustíveis no Brasil
Victor Moriyama/Getty Images

O preço do barril de petróleo foi negociado acima dos US$ 100 pela primeira vez desde 2014 nesta quinta-feira (24/2), após o início da invasão russa à Ucrânia, com bombardeios registrados em diversas cidades do país do leste europeu.

No fechamento, a cotação do barril suavizou um pouco a alta e ficou em US$ 99,08.

Ao mesmo tempo, os valores dos contratos de trigo e milho negociados na bolsa de Chicago chegaram a subir mais de 5% antes da abertura do mercado e atingiram o limite de alta após o início das negociações, que por conta disso foram temporariamente interrompidas.

Com a alta do milho e preocupações também com relação ao mercado de óleo de girassol - do qual a Ucrânia é o maior produtor do mundo - a soja também estava em alta no pregão desta quinta.

Até o dólar, que havia fechado a quarta-feira cotado a R$ 5, no menor valor desde junho de 2021, inverteu a tendência, e já é negociado acima dos R$ 5,10.

O combo formado por petróleo, grãos e dólar em alta, resultado da escalada da crise ucraniana, torna ainda mais complicado o cenário para a inflação no Brasil em 2022.

Segundo analistas, o movimento pode resultar em alta dos combustíveis, dos custos industriais e de alimentos básicos como pão e carnes, já que os grãos como milho e soja são utilizados na ração animal.

A magnitude dos reajustes, no entanto, vai depender da duração e da gravidade da crise no leste da Europa, já que os agentes do mercado devem se manter em espera durante esse primeiro momento de forte volatilidade, para aguardar os desdobramentos da guerra.

O choque internacional acontece num momento em que as coisas já não iam bem para a inflação brasileira.

Na quarta-feira, o IPCA-15, prévia da inflação de fevereiro, surpreendeu com uma alta de 0,99%, acima das expectativas dos analistas (0,87%) e maior resultado para o mês desde 2016, com alta de preços maiores do que o esperado em serviços e bens duráveis, como automóveis, eletroeletrônicos, eletrodomésticos e móveis.

Com as novas incertezas, as expectativas para o IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), medida oficial de inflação do país, devem continuar em alta.

Na segunda-feira, os analistas previam avanço de 5,56% para o IPCA em 2022, após seis semanas de revisões para cima da mediana das projeções no boletim Focus do Banco Central, que semanalmente consulta os economistas quanto às suas estimativas para a economia.

Com os cenários internacional e inflacionário mais turvos, o Banco Central tem um desafio a mais para definir os rumos da política monetária brasileira.

A maioria dos agentes vê a Selic (taxa básica de juros da economia brasileira) indo a 12,25% até maio, mas com a surpresa negativa do IPCA-15 na quarta, já há quem enxergue a taxa indo a 12,75%, caso por exemplo do banco Credit Suisse. Atualmente, a taxa está em 10,75%.

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Petróleo acima de US$ 100

Os preços do petróleo do tipo Brent superaram os US$ 104 por barril durante as negociações desta quinta-feira, enquanto o WTI (referência do mercado americano) se aproximou dos US$ 100.

A Rússia é o segundo maior exportador do óleo no mundo, atrás apenas da Arábia Saudita, e o terceiro maior produtor. Também é o principal exportador e segundo maior produtor de gás natural, respondendo por 41% do gás importado pela União Europeia.

Assim, uma guerra envolvendo o país provoca temores quanto à oferta desses insumos no mundo, num momento em que a produção de petróleo e gás já vinham sendo insuficiente para acompanhar o aumento global da demanda.

"Esse ano, independentemente da guerra na Ucrânia, já seria um ano de petróleo caro, porque a oferta está crescendo menos do que a demanda, pois nos últimos cinco a seis anos, os grandes produtores internacionais investiram muito pouco em exploração e produção, devido às pressões ambientalistas e à pandemia", observa Adriano Pires, diretor do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura).

Com uma Opep (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) empoderada pela restrição de oferta, a expectativa inicial já era do barril na casa dos US$ 90. Com a guerra na Ucrânia, formou-se a "tempestade perfeita" para ir acima dos US$ 100.

Pires observa, porém, que a alta de preços do petróleo não é de todo negativa para o Brasil, já que o país é produtor do óleo e um preço mais alto do barril aumenta a arrecadação de impostos pelo governo federal, Estados e municípios.

Por outro lado, como a Petrobras reajusta os combustíveis seguindo o movimento dos preços internacionais do petróleo, o analista reconhece que o reajuste deve ser inevitável nas próximas semanas, mesmo com a recente valorização do real, que serve como um contrapeso.

"A Petrobras está há 43 dias sem reajustar combustíveis. A coisa boa nesse período é que o câmbio valorizou, chegou a bater abaixo de R$ 5. Isso ajuda que a defasagem [de preços do mercado interno com relação ao internacional] fique menor, por outro lado o petróleo está subindo", observa.

"Mas, num momento de forte instabilidade do petróleo e do dólar, a Petrobras não deve sair anunciando um aumento agora, deve esperar para ver como fica a guerra, para ver qual será o novo patamar de preços", afirma.

Segundo Pires, a pressão nos preços internacionais do petróleo pode acelerar a tramitação no Senado de três projetos relacionados ao mercado de combustíveis: o PLP 11/2020, que determina alíquota unificada para o ICMS sobre combustíveis; o PL 1.472/2021, que cria uma conta para financiar a estabilização dos preços; e a PEC 1/2022, apresentada pelo senador Carlos Fávaro (PSD-MT), que propõe a redução de impostos sobre combustíveis. Os dois primeiros têm votação prevista para depois do Carnaval.

Pires, no entanto, não acredita em alguma intervenção mais dura do governo na política de preços da Petrobras, mesmo diante das reiteradas mostras de preocupações do presidente Jair Bolsonaro (PL) com a alta dos combustíveis num ano eleitoral.

"Acredito que o único cenário em que o governo tomará uma posição intervencionista é se o barril for a US$ 150, US$ 200. Mas daí não será apenas o governo brasileiro, o mundo inteiro deverá impedir que isso chegue ao consumidor, porque é impagável", diz o analista.

Trigo, milho e soja em alta

Rússia e Ucrânia são respectivamente o primeiro e o quinto maiores exportadores de trigo do mundo e respondem juntos por mais de 15% do comércio global de milho, o que explica a forte alta das duas commodities agrícolas nesta quinta-feira.

"Pelo menos nos próximos dias, os preços devem se manter pressionados, até que se tenha uma definição do que realmente vai acontecer", avalia Roberto Sandoli, analista de grãos da consultoria hEDGEpoint.

Segundo ele, se as retaliações à invasão russa se restringirem a sanções, essa tendência de alta pode perder força.

Mas, se a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) decidir enviar tropas à Ucrânia, no que vem sendo considerado um cenário de uma "Terceira Guerra Mundial", a pressão tende a se perpetuar.

Sandoli explica que o Brasil compra trigo da Argentina, país que fornece o produto a regiões também abastecidas por Rússia e Ucrânia, como o sul da Ásia e o norte da África.

"Se tivermos um cenário de guerra onde Rússia e Ucrânia parem de fornecer trigo, os compradores vão buscar outras origens, como a Argentina. Isso acaba impactando toda a precificação de importação e deixa o câmbio mais estressado", observa o analista, destacando ainda a pressão sobre o mercado de soja, devido à competição do produto com o óleo de girassol, do qual a Ucrânia é o maior exportador global.

"Se essa situação se estender, o consumidor vai começar a sentir", diz Sandoli, destacando os impactos sobre a ração animal e sobre a produção de pães e massas alimentícias.

Segundo o analista, se a crise escalar ainda mais, a pressão para os consumidores pode vir não só via preço, mas também via abastecimento.

"Os compradores começam a sair correndo, por uma questão de segurança alimentar. Todo mundo sai comprando. Já vimos isso no começo da pandemia, quando os preços subiram absurdamente", observa o especialista, ponderando, porém, que não considera esse o cenário mais provável no momento atual.

No Brasil, soma-se a esse quadro internacional estressado as quebras de safra de soja e milho no Sul do país devido à seca neste início de ano.

Por outro lado, a valorização recente do real em relação ao dólar também ajuda a situação do mercado de alimentos. Isso porque, com o real mais forte, fica mais barato para o Brasil importar commodities, mesmo que elas estejam mais caras devido às possíveis restrições de oferta.

Ainda no campo do agronegócio, outro fator de preocupação são os fertilizantes, já que o Brasil importa mais de 20% desses produtos da Rússia. Também aqui uma restrição de oferta no mercado global em decorrência da guerra pode pressionar os custos dos produtores brasileiros, forçando-os a repassar a pressão aos preços.

E a inflação e os juros com tudo isso?

Para André Braz, coordenador índices de preços no Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), o reajuste de combustíveis pela Petrobras é inevitável e deve afetar a inflação este ano.

"A gente concentra muito as análises em combustíveis, mas é preciso lembrar que o petróleo é matéria-prima para vários setores, para a indústria química, para o agronegócio devido aso fertilizantes. Então o preço do petróleo afeta a economia como um todo, num momento em que já tínhamos diversas cadeias produtivas com gargalos de produção", observa Braz.

"Essas cadeias podem agora sofrer gargalos ainda mais profundos, à medida que essa guerra se aprofunde e os países não entrem num acordo", avalia.

Além disso, o cenário de guerra muda a estratégia dos investidores internacionais e pode pôr fim à movimentação recente de valorização do real, o que também pode pressionar os preços.

"O fluxo de entrada de recursos aqui, que era mais capital especulativo, tentando explorar o diferencial de juros, pode agora buscar destinos de maior proteção, como economias mais sólidas", afirma Braz.

"Então não necessariamente esse fluxo vai continuar e nossa moeda pode não manter a valorização acumulada no período recente."

O pesquisador da FGV avalia, no entanto, que esse aumento das pressões inflacionárias não necessariamente vai fazer o Banco Central brasileiro subir mais juros. Isso porque, a partir de um determinado nível, os juros impõem uma paralisação muito forte da economia.

Além disso, o crescimento global também pode ser comprometido pela guerra na Europa, o que pesaria sobre a atividade econômica interna.

"Há um limite para o que a política monetária pode fazer, porque um juro cada vez mais alto significa crescer cada vez menos esse ano", diz Braz, lembrando ainda que os juros visam conter a demanda, mas grande parte da pressão atual de preços vem da ponta da oferta, não sendo afetada por aumentos adicionais da Selic.

"Não adianta querer botar a Selic a 12,75% por conta dessa guerra, até porque aumentos da taxa básica levam de seis a nove meses para afetarem a economia. Então, se eu aumento muito, esse aumento não vai bater agora, mas lá no fim do ano, quando o cenário já será outro", conclui o analista.


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