O capitão encrenqueiro e criador de confusões em seus 28 anos como deputado federal pelo Rio, suficientes, a maioria delas, para enfrentar processos disciplinares que o levassem a perder o mandato, chega ao fim de sua presidência como o rebelde em conflito permanente com as instituições da República que tentaram colocá-lo no eixo. É assim que ele conduz a sua campanha à reeleição.
O Congresso ele apaziguou entregando um naco do orçamento fiscal a parlamentares da boquinha, vulgo centrão, para ser fatiado ao gosto da direção das casas parlamentares. O tal "orçamento secreto", pois não se conhecem os nomes dos parlamentares beneficiados, envolve R$ 16 bilhões do orçamento da União, mais cerca de R$ 30 bilhões de emendas de anos passados. É a base parlamentar que ele arrendou para topar qualquer parada.
O STF é o derradeiro obstáculo para governar ao bel-prazer, embora já tenha indicado dois dos 11 ministros da Corte, o último dos quais, André Mendonça, ex-advogado geral da União, ousou contrariá-lo ao votar pela condenação do deputado arruaceiro Daniel Silveira, um ex-PM do Rio cujos músculos contrastam com os poucos miolos.
Placar elástico: 10 a 1, este de Kassio Nunes, que disputa com o procurador-geral da República Augusto Aras as atenções do padrinho. Mas, nesta ação, a condenação veio de parecer da vice-procuradora-geral Lindôra Araújo, ligada a Aras. "É inaceitável que um parlamentar diga: 'Que o povo entre no STF e agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele e sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue numa lixeira'", leu Lindôra, sorrindo para Moraes, que também riu.
Não foi o ministro Moraes, relator do caso, que fez a denúncia, ao contrário do que sugere Bolsonaro e os bolsonaristas martelam nas redes sociais. Ele acatou o pedido da PGR na ação em que Daniel Silveira é acusado de coação, incitação à animosidade entre as Forças Armadas e o STF, a defesa do Estado de exceção ao pedir a restauração do AI-5 (instrumento da ditadura), entre outros crimes.
A sentença: oito anos e nove meses de prisão em regime fechado, multa e a inelegibilidade por oito anos. Caso encerrado? Não para Bolsonaro, que um dia depois editou decreto de indulto de graça para livrar o aliado da condenação e afrontar o Supremo.
Atravessou todos os rubicões
Bolsonaro atravessou todos os rubicões, ao assumir-se como supraintérprete da Constituição. Outorgou-se o papel inconstitucional de revisor do STF, embora se servindo de um ato, em tese, legal. Nem autocratas tipo Orban, da Hungria, e Putin, da Rússia, chegaram a tanto. Todos esperaram um segundo mandato para amoldar os tribunais à sua feição. Bolsonaro antecipou o ultraje ao Judiciário.
Partidos já entraram no STF com pedidos de derrubada do decreto de graça, sustentando, entre outros motivos, que o indulto antecede o trânsito em julgado da sentença, além de quebrar o princípio da impessoalidade. O provável é que o indulto não se sustente. Mas na prática já funcionou para Bolsonaro, ao se pôr como vítima de uma suposta conspiração do judiciário e da mídia contra sua reeleição.
Assiste-se, na prática, ao esgarçamento do Direito, iniciado com a Lava Jato, num conluio entre juiz e procuradores, referendado pelas turmas do TRF-4 e STJ. Tudo assistido sem reação pela comunidade do Direito, com a cumplicidade acovardada do Congresso. Bolsonaro é a sequela da criminalização da política, e é isso que está em causa.
Autoengano dos mandachuvas
A questão chave não é se presidente pode indultar condenado pelo STF, mas o que o tribunal fará para preservar sua inviolabilidade e se o seu ato saneador terá consequência. Se não reagir de ofício ou instado por terceiros, o Estado de direito será rompido, abrindo-se o vácuo sempre ocupado pelo oficial da guarda, no caso, um capitão.
Discutir a legalidade do decreto presidencial é meio preciosismo. Importa atentar que o presidente se insurgiu contra um ato superior constitucionalmente legítimo. É brincar com fogo junto a um paiol de pólvora relevar aprendiz de autocrata sob a desculpa de que "ele é assim", é "tosco e folgado", conforme o autoengano dos mandachuvas do PL e PP, do tal centrão raiz.
O resumo da situação: houve um golpe, por mais absurdo que pareça. As consequências e reações dirão se foi eficaz ou não. Os olhares se dirigem à sociedade, cuja reação será decisiva, ao empresariado, ao Congresso e às Forças Armadas. Nesta ordem, não ao contrário.
As reações não favorecem os devaneios bolsonaristas. Na primeira hora, depois que se soube do indulto anunciado por Bolsonaro por meio de uma live, muitos indagaram se era pegadinha de Twitter — fake news, como se diz. Com o avançar das horas, quem tem poder de influência nos meios empresariais e financeiros ficou perplexo.
Prisioneiros do laissez-faire
Os cenários estão incertos, mas já puseram as agências de risco em campo para reavaliar a ideia disseminada pelos próprios caciques do centrão de que saberiam moderar um político errático que disfarça a sua mediocridade armando confusões à revelia do interesse público.
Afora financistas de moral dúbia e empresários que aceitam trocar a democracia formal por um simulacro de Estado de direito para não ter a volta do PT, a elite empresarial ainda procura alternativas à eleição binária em que seus líderes não representam setores majoritários da sociedade. De Lula esperavam uma renovação que não houve, por ora, nem dele nem do PT. De Bolsonaro nada esperam. Ele teve tempo e não soube recuperar o atraso econômico, no mundo movido por avanços tecnológicos, que aprofunda a erosão social.
A discussão que importa é a travada pelos novos conservadores nos EUA com uma agenda desenvolvimentista mais próxima dos seus rivais do Partido Democrata que dos barões de Wall Street, baluartes do "fundamentalismo de mercado", como dizem, a la Reagan e Thatcher.
A tal terceira via nunca saiu do traço talvez por ser prisioneira da concepção laissez-faire da economia. Quando João Dória caiu em si, dizendo-se "social liberal", já era tarde. Para todos, aliás.
Há tempo para uma ampla coligação reformista em torno de programa inovador, que existe, e alguém novo, embora afiliado a um partido, como exige a legislação eleitoral. Nele caberia até Lula, mas não a extrema-direita, que o tempo cuidará de curar, como curou o nazifascismo na Europa e o stalinismo no Leste Europeu. A ver.
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