O assassinato de um indigenista e de um jornalista na Amazônia, as chacinas seriadas e os mortos por balas ditas perdidas no Rio de Janeiro são crimes triviais na barbárie brasileira. Estão em todo o país, não raramente cometidos por policiais e sicários a soldo de organizações criminosas infiltradas no aparelho de Estado, algumas disfarçadas como negócio econômico ou político lícito.
A violência sempre fez parte do cotidiano, só era pouco visível e não se deve, como sonsos do Instagram supõem, à falta de segurança a ser combatida armando a população, essa outra forma de barbárie.
O país já estava a caminho da decadência econômica, ética e moral desde que se incrustaram entre as elites pensantes ideias importadas dos EUA, segundo as quais o Estado deveria ser mínimo para a riqueza fluir, o desenvolvimento acontecer e a pobreza desaparecer.
Nos EUA, tal ideologia gerou a maior concentração de renda desde a década que antecedeu a Grande Depressão dos anos 1930 e implicou a ascensão da China, graças à migração de fábricas em busca de salário baixo e nenhuma restrição trabalhista e ambiental, deixando regiões arrasadas pelo desemprego, como os estados do Meio-Oeste americano.
Foi o que levou à ascensão de Trump, que prometeu fazer a economia dos EUA grande outra vez. Na prática, abriu a ferida jamais curada do racismo, instigou o ódio aos imigrantes, transferiu a culpa pela desdita americana aos asiáticos, aos latinos pobres — a permanente procura de culpados, conforme a práxis da extrema-direita onde quer que ela se manifeste no mundo. No Brasil de Jair Bolsonaro, também.
Bolsonaro encontrou, e agravou, um "círculo vicioso de estagnação econômica e frustração popular", segundo reportagem da edição atual da revista inglesa The Economist, intitulada "Como as democracias decaem".
Aliás, elegeu-se não por seus méritos, mas exatamente por não ter mérito algum, despreparado que é, expressando a raiva do eleitor, em especial de classe média, aos políticos, vistos como "corruptos e egoístas", descreve a série de reportagens, falando da América Latina em geral, onde abundam 'bolsonaros' de esquerda e direita.
Quatro anos depois, a realidade fria se impõe, com 33 milhões de brasileiros na indigência, a maioria da população vivendo de bicos, disfarçada como "microempresário" nas estatísticas de desemprego, setores industriais sob a ameaça de extinção, sem investimentos em tecnologia, como o automotivo. Fato: a governança da economia e da sociedade sob a mediação do Estado, em suas muitas formas, colapsou.
Causa original do desastre
Se o Estado e sua estrutura operacional não servem à maioria, não há o que reformar — não, pelo menos, as reformas de viés liberal, como a tributária apartada de um programa que revitalize a economia, fazendo-a crescer com investimentos em infraestrutura e em inovação tecnológica, além de geradores de milhões de empregos de qualidade.
Reforma administrativa, significando arrocho do funcionalismo, não tem seriedade se mantiver intacta a governança política do Estado.
Essa é a causa original da inépcia dos serviços públicos, das leis e programas que só servem aos maganos do topo da pirâmide de renda, da corrupção sistêmica. Os desvios florescem quando instituições e órgãos que lhe dão forma trabalham sem controle, sem transparência, sem metas nem objetivos nacionais e sociais apartidários.
Um exemplo? Tome-se a Lava Jato. Prendeu empresários e políticos. Confiscou dinheiros roubados. Mas permitiu a ruína da construção pesada e da engenharia de grandes obras, ao não forçar a mudança de controle acionário. Com mentalidade provinciana, seus procuradores e juízes queriam mesmo era inabilitar Lula da eleição de 2018.
Democracia refeita do zero
A mensagem da Economist para parar o que chama de "podridão" serve ao Brasil, dilacerado por perversões ideológicas primárias, tanto no plano dos costumes quanto no liberalismo darwinista dos últimos 40 anos, que adquiriu traços de crueldade explícita neste governo.
"Os latino-americanos precisam reconstruir a democracia do zero. O seu destino", diz The Economist, "só deverá piorar, se a região não redescobrir a vocação da política como serviço público e reaprender o hábito de forjar consenso". Consenso significa coesão em torno de propósitos comuns. Nenhum fará sentido sem crescimento econômico à larga e o desenvolvimento como fonte de esperança de dias melhores.
Essa é a responsabilidade que se projeta nas eleições. Exatamente o que não se vê nas decisões eleitoreiras tomadas pelo Congresso a fim de tentar inflar as chances do governante. É o que se fez com o desvio de dinheiros da saúde e da educação mantidas pelos estados e municípios ao se aprovar o teto de 17% do ICMS dos combustíveis e energia elétrica — vilões da inflação combatida com juro crescente pelo Banco Central, que estão só em sua ingrata missão.
A autonomia da Federação foi conspurcada a pretexto de intervir na formação do preço de combustíveis, e a Petrobras ignora as manobras da maioria parlamentar aliciada pelo Centrão, liberando recursos do tal "orçamento secreto", e aumenta a gasolina e o diesel.
Nas falas de Bolsonaro e do presidente da Câmara, Arthur Lira, os diretores da estatal traíram a sociedade. Sério isso, se seis dos 11 conselheiros da Petrobras são indicações do governo, assim como toda a diretoria executiva? E Bolsonaro ter demitido três de seus presidentes, supostamente por não seguir suas ordens? Difícil...
Como está não deve ficar
Se os governantes estivessem de fato aflitos com a carestia dos combustíveis, bastaria mudar a política de paridade internacional dos preços dos derivados do petróleo. Com R$ 106 bilhões de lucros no ano e R$ 40 bilhões no trimestre, a Petrobras poderia dilatar o intervalo dos reajustes sem traumatizar os especuladores da Bolsa.
Ao ignorar a causa real por trás das altas dos preços, fica no ar a suspeita de que há algo mais, talvez a intenção de desmoralizar a estatal para privatizá-la. O único responsável por ela é o governo, apesar do que diz para ficar bem junto à população desinformada. O neoliberalismo dessa gente tem razões nebulosas. Como dizia Delfim Netto, czar da economia de três dos cinco governos militares e ex-deputado de vários mandatos, "em Brasília, o mais bobo é suplente". Os espertos devem estar no Facebook (aviso: modo ironia acionado).
Fato é que como está não fica. Ou o futuro governo assume de peito aberto uma política de crescimento econômico, para o que precisará zerar o poder extemporâneo do Centrão sobre o orçamento fiscal, ou vai fracassar antes que acabe o seu primeiro semestre.
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