Projeto de lei

Por que projeto para reduzir preço de combustíveis pode não funcionar?

Em março, o Brasil tinha a segunda gasolina mais cara entre países sul-americanos. Especialistas afirmam que uma queda de preços é improvável


Nos próximos dias, o Senado deve pôr em votação um projeto de lei que estabelece um percentual máximo para a cobrança do Imposto de Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) dos combustíveis, energia e outros insumos considerados essenciais. O projeto é mais uma tentativa apoiada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro (PL) para tentar controlar a alta no preço dos combustíveis.

A pouco mais de quatro meses das eleições, Bolsonaro vem demonstrando preocupação com o aumento no preço da gasolina, diesel e gás de cozinha. Ele aparece em segundo lugar nas principais pesquisas de intenção de voto, atrás do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo levantamento do Datafolha de março deste ano, 68% dos brasileiros associam a alta no preço do produto ao presidente.

Mas especialistas e gestores ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a eventual implementação do projeto pode, simplesmente, não surtir o efeito desejado pelo governo e, ainda por cima, ter efeitos colaterais em áreas como a educação.

Segundo eles, estabelecer um teto do ICMS sobre combustíveis não garante que o preço da gasolina vai cair proporcionalmente nas bombas dos postos porque esse alívio tributário pode ser embolsado por empresas que atuam no setor.

Eles afirmam também que, como a Petrobras acompanha a cotação do petróleo no mercado internacional, novas pressões externas sobre o produto podem aumentar o preço dos combustíveis novamente.

Crise dos combustíveis

O preço dos combustíveis vem aumentando no Brasil de forma acentuada nos últimos anos. De acordo com a Agência Nacional do Petróleo (ANP), entre março de 2021 e março de 2022, o preço médio do litro da gasolina aumentou 29,8%, saindo de R$ 5,59 para R$ 7,26.

Essa alta foi resultado, em parte, do aumento no preço do petróleo no mercado internacional, no último ano. De acordo com o Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), o preço do barril tipo Brent estava cotado a US$ 65 em maio de 2021. Em maio deste ano, o preço chegou a US$ 115, uma alta de 76%.

Com o aumento do preço dos combustíveis afetando fortemente a inflação oficial do país, o governo passou a procurar formas de baixar o preço do produto. As ações do presidente Bolsonaro nessa área se dividiram em duas frentes principais. Em uma, ele vem mudando com frequência o comando da Petrobras. Neste ano, foram três trocas. As mudanças vêm sendo vistas como uma espécie de pressão para que a estatal mude a política de preços dos combustíveis, que atualmente está alinhada com o mercado internacional.

Na outra frente, Bolsonaro zerou, em 2021, os tributos federais sobre o óleo diesel e gás de cozinha. Nas últimas semanas, a ala política passou a estudar outras alternativas como uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) para subsidiar o preço dos combustíveis e até mesmo reeditar um decreto de calamidade pública que permita ao governo agir com mais liberdade para gastar recursos públicos com esse fim.

Além disso, Bolsonaro também passou a pressionar publicamente os governos estaduais a reduzirem o ICMS sobre os combustíveis. E é exatamente este o tributo que está no centro das atenções do projeto que deverá ir à votação.

REUTERS/Adriano Machado
Bolsonaro enfrenta dificuldades para avançar nas pesquisas de intenção de voto às vésperas das eleições

Teto para imposto

O projeto estabelece que combustíveis, energia elétrica e serviços de telecomunicações são insumos essenciais e, por isso, os estados só poderiam cobrar até 17% de ICMS sobre esses produtos. O ICMS é um tributo cobrado pelos estados, ou seja, seus recursos vão direto para os cofres estaduais.

Se o projeto virar lei, estados que cobram mais de 17% de ICMS sobre os combustíveis terão que limitar a cobrança a esse percentual. O Rio de Janeiro, por exemplo, tem uma alíquota de 34% sobre combustíveis. Se o projeto entrar em vigor, o estado terá que cortar esse percentual pela metade e cobrar, no máximo, 17%.

"Nossa ideia é diminuir o preço dos combustíveis e desses outros produtos para o consumidor final. No caso dos combustíveis, isso tem um efeito amplo porque a alta deles influencia na alta de diversos outros produtos", diz o deputado Danilo Forte (PSDB-CE), autor do projeto.

Cálculos feitos pelo Comitê Nacional de Secretários Estaduais de Fazenda (Comsefaz), no entanto, estimam que o corte pode gerar uma perda de até R$ 83,5 bilhões a estados e municípios de todo o Brasil.

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil afirmam que não há garantias de que essa redução do ICMS possa, de fato, reduzir o preço dos combustíveis como deseja o deputado e o governo do presidente Bolsonaro.

Novo boom

Para o especialista na área tributária da consultoria Mazars, Luis Carlos dos Santos, o estabelecimento de um teto para o ICMS não resolve a causa da alta nos preços dos combustíveis: a política de preços adotada pela Petrobras, alinhada às oscilações do preço do petróleo no mercado internacional.

"Entendo que o projeto pode não funcionar pois os preços estão atrelados ao mercado externo. Se houver um novo "boom" na cotação do petróleo, não será a mudança do ICMS que permitirá uma diminuição ou manutenção de um preço mais baixo nas bombas", explica o consultor.

Entre os fatores que ajudaram a elevar o preço do petróleo no mercado internacional neste ano está a invasão da Ucrânia pela Rússia. A guerra no leste europeu começou no dia 24 de fevereiro e já dura mais de 100 dias. Desde o seu início, a cotação do barril tipo Brent saiu de aproximadamente US$ 100 para picos de US$ 121. Os preços oscilaram, em grande parte, porque a Rússia é um dos maiores produtores de petróleo e gás natural do mundo. O conflito causou nervosismo no mercado em relação à capacidade de suprimento do produto em meio às sanções que países como os Estados Unidos e a União Europeia impuseram ao petróleo russo.

"Sem mexer na raiz do problema, que é a política de preços da Petrobras, pode haver algum novo choque externo que jogue o preço pra cima. E aí o governo corre um risco enorme de gastar capital político às vésperas das eleições e a medida ser um tiro no pé", disse o professor Carlos Eduardo Navarro, pesquisador do Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), de São Paulo.

"Corremos o risco de reduzir o ICMS agora e, amanhã ou depois, estarmos diante de um novo pico e teremos que discutir outras maneiras de reduzir o preço dos combustíveis", completa Navarro.

Marcello Casal jr/Agência Brasil
Brasil tem 3ª gasolina mais cara do mundo, segundo consultoria

Falta de controle

Além do risco de um novo "boom" no preço do petróleo, especialistas apontam um outro fator que pode fazer com que a redução do ICMS não tenha impacto concreto no preço dos combustíveis. Eles afirmam que há a possibilidade de que essa diminuição da carga tributária possa ser "embolsada" pelas empresas que atuam no setor de combustíveis.

"A premissa do governo é de que se a gente reduzir o imposto em 10%, o preço deveria cair nessa proporção. Mas essa queda pode não acontecer. O que pode ocorrer é que as empresas incorporem essa redução nas suas margens de lucro. Em vez de repassar a redução para o consumidor, eles continuam cobrando o mesmo preço e lucram a diferença", explica Navarro.

O professor da FGV explica que há diversos estudos sobre desonerações setoriais feitas pelo governo federal ao longo dos anos que mostram que, em parte significativa dos casos, as reduções de tributos não tiveram o efeito desejado.

"O problema é que, se de um lado, o governo pode apoiar a redução de tributos, por outro ele não pode obrigar o posto de gasolina a aplicar essa diminuição da carga tributária. Por isso, esse tipo de mecanismo é pouco eficiente", afirmou o professor.

"Não tem garantia nenhuma de que vai funcionar. Não temos como saber se os agentes vão embolsar ou não essa redução. A literatura sobre o assunto mostra que é muito mais comum que não haja efeito ou que o efeito seja mínimo", disse Navarro.

Luis Carlos dos Santos, da Mazars, também avalia que há o risco de que as empresas simplesmente incorporem a redução do ICMS sobre os combustíveis às suas margens de lucro.

"Se isso (redução do preço nas bombas) não acontecer, a legislação não estará cumprindo o seu objetivo", afirmou o consultor.

Um dos exemplos mais estudados sobre a falha das políticas de redução de tributos é o da desoneração da folha de pagamentos feita entre 2012 e 2015 como tentativa de incentivar a retomada do crescimento econômico e diminuir a taxa de desemprego.

Em 2018, um estudo publicado pelo Ipea mostrou que a desoneração não teve impacto significativo na manutenção ou geração de emprego naquele período.

"A despeito das intenções positivas da lei de desoneração, pode-se dizer que, pelas avaliações ex-post (com base em conhecimento) já realizadas [...] não há evidências robustas de efeitos reais positivos da desoneração", diz um trecho da pesquisa.

Um dos economistas que participou do estudo foi Adolfo Sachsida, nomeado por Bolsonaro como ministro de Minas e Energia num dos movimentos para tentar conter o preço dos combustíveis.

A BBC News Brasil procurou o ministério e perguntou se Sachsida era favorável à redução do imposto sobre os combustíveis, mas a assessoria do órgão não respondeu.

Questionado sobre os riscos apontados pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil e críticas à medida, o Ministério da Economia disse que não iria se pronunciar sobre o assunto. O Palácio do Planalto não respondeu às perguntas enviadas.

Efeitos colaterais

Somada aos riscos apontados pelos especialistas, a redução do ICMS sobre os combustíveis poderá ter impactos diretos em áreas sensíveis da administração pública nos estados, como educação.

Isso acontece porque, pela Constituição, pelo menos 20% de tudo o que é arrecadado pelos estados com o ICMS tem que alimentar o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) são oriundos da arrecadação do ICMS.

Em alguns estados, porém, a participação do ICMS na composição do Fundeb é bem maior que isso. Segundo o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), no Rio de Janeiro, esse percentual é de 90%.

A organização não-governamental Todos pela Educação divulgou uma nota técnica na semana passada apontando que a redução proposta pelo projeto pode resultar em uma perda de R$ 16 bilhões por ano em recursos para a educação em todo o Brasil.

Getty Images
Paulo Guedes atacou governadores que se mostraram contra redução do ICMS para combustíveis

O projeto já causou tensão entre governadores e a equipe econômica. Durante sua passagem pelo Fórum Econômico Mundial, em Davos, o ministro da Economia, Paulo Guedes, atacou os governadores que se mostraram contra a medida.

"Pode jogar lá... nos estados que estão reclamando, o governador ou é despreparado ou é um ingrato", disse Guedes.

Por outro lado, o presidente do Consed, Vítor Ângelo, diz que a redução do ICMS contrapõe um benefício incerto (redução dos preços nos combustíveis) a um prejuízo certo: a perda de recursos para a educação.

"É claro que nós somos a favor de uma redução no preço dos combustíveis. Mas entendemos que isso não pode acontecer em prejuízo à educação, ainda mais em um momento de volta da pandemia, em que todos os nossos recursos deveriam estar voltados para isso", diz o presidente.

Vítor Ângelo diz que, se a redução se concretizar, estados e municípios enfrentarão dificuldade para manter a estrutura existente e fazer investimentos na área.

"Sem esses recursos, vai ficar difícil contratar novos professores, construir ou reformar escolas. Vai haver estados e alguns municípios que terão muitos problemas para investir em melhorias ou mesmo implementar o novo piso da educação básica, anunciado recentemente", diz o presidente.

O deputado Danilo Forte argumenta que os supostos prejuízos apontados por Vítor Ângelo seriam compensados pelo aumento no consumo de outros produtos.

"Se a gente reduzir o preço dos combustíveis, isso vai ter impacto em outras áreas, vai reduzir outros preços e aumentar a arrecadação na outra ponta. Não vai ter esse prejuízo que estão falando", disse o parlamentar.

O professor Carlos Navarro, por outro lado, rebate essa tese.

"Essa ideia não faz sentido. Ninguém vai passar a abastecer mais o carro só porque o preço caiu. Os trajetos que as pessoas fazem continuarão os mesmos. Outro problema é que toda essa discussão não está sendo feita com base em estudos robustos. Há uma emergência e querem resolver", afirma o professor.

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