Entrevista | José Roberto Afonso | Economista

"LRF precisa ser modernizada"

Correio Braziliense
postado em 10/07/2022 00:01
 (crédito:  Billy Boss/Camara dos Deputados)
(crédito: Billy Boss/Camara dos Deputados)

O senhor critica o ativismo do Legislativo, mas o papel de deputados e senadores foi importantíssimo durante a pandemia...

Eu acho interessante ter um Congresso ativo. E é verdade que, quando entramos na pandemia, o Legislativo brasileiro foi um dos poucos que não pararam de funcionar. E aprovou uma emenda constitucional do Orçamento de Guerra, dando um sinal de apoio ao Executivo. Isso é bom, mas me parece que tem havido um certo excesso, que, creio, seja conjuntural. Não sou cientista político, mas, de novo, acho que esse excesso decorre de um governo que não governa. O Congresso passa não só a legislar, mas a avançar nas questões executivas. E o melhor retrato disso é, sobretudo, a questão orçamentária. É quando no Orçamento, que é um peça-chave na democracia, o governo se torna uma mera peça carimbadora de papéis.

Mas as discussões sobre o Orçamento nunca foram prioridade no Brasil...

Sim, as discussões sobre as nossas prioridades nacionais já eram pobres, mas, agora, o governo passou a aceitar, volto a insistir, a missão de mero carimbador do que é decidido no Congresso. Na minha opinião, tem um pecado capital nesse processo: antes, você podia perdoar, dizer que era um pecado irrelevante, pois não se tinha um Congresso impondo decisões orçamentárias sem a devida transparência e sem o devido debate público. O pecado capital, para mim, está na Constituição de 1988.

Por quê?

Na primeira fase da Assembleia Constituinte, das comissões temáticas, a maioria dos líderes trabalhou com o modelo de um país que seria parlamentarista. Em particular, os principais líderes de matérias econômicas, fiscais, eram majoritariamente defensores do parlamentarismo. Então, sob essa ideia, desenhou-se um capítulo tributário preparado para esse regime de governo, no qual o Congresso manda, mas tem o ônus e o bônus. Tem o bônus de nomear o novo governo, mas o de sustentar e ser responsável por aquilo que o governo está fazendo. No meio da Constituinte, o Centrão, que era muito melhor do que o atual, em aliança com os partidos de esquerda, como o PT de Lula e o PDT de Brizola, aprovou um regime presidencialista. Mudou-se, então, o capítulo de organização de governo, de Estado, mas ninguém mexeu nos capítulos tributário e de Orçamento. Ficaram praticamente intactos. Então, temos um pecado capital, uma Constituição que em matéria orçamentária e tributária é parlamentarista num regime presidencialista.

Qual a consequência disso?

Passaram-se 30 anos, e isso sobreviveu. Mas, antes, o que se definiu em 1988 tinha uma lógica, uma coerência, uma consistência. Agora, isso, a meu ver, foi perdido por causa do excesso de emendas constitucionais que foram aprovadas. Acho, inclusive, que parte desses problemas começou na emenda do teto de gastos, quando se passou a imagem de que um regime fiscal que limita as despesas resolveria tudo. Não existe em nenhum lugar do mundo um regime fiscal que trata apenas de uma variável. Essa é uma simplificação. Pode-se ter teto de gasto, mas é preciso combinar com as receitas, com a dívida, com o patrimônio. É um conjunto de regras. Como no mercado financeiro. Duvido que algum banco vá dar um empréstimo só perguntando a seu cliente se ele controla as despesas. Essa simplificação não é boa, a regra não pode ser isolada.

A simplificação, por
sinal, ficou explícita no debate em torno do tabelamento do ICMS, não?

Com certeza. O discurso foi o de dizer que os estados estavam com dinheiro em caixa e não precisavam de tantas receitas. Primeiro, tem que perguntar se o dinheiro em caixa é suficiente para cobrir todas as despesas, a dívida. Outra ironia: se há um estado quebrado, como o Rio de Janeiro, sem nenhum dinheiro em caixa, esse estado está bem? O que estamos dizendo agora é o seguinte: só o caixa importa. Mas tem a contradição absurda de que é preciso fazer ajuste fiscal e punir quem economizou. Ou seja, está se dizendo aos governadores e aos secretários estaduais de Fazenda de hoje e do futuro para que torrem tudo, não deixem mais dinheiro em caixa, gastem alucinadamente. É o oposto do teto de gastos. O tamanho do seu caixa não quer dizer nada isoladamente. Então, temos uma simplificação de algo que não é simples por natureza. Toda matéria tributária, orçamentária, não é simples. E leva a essa sucessão de emendas constitucionais que não tem paralelo nem na história brasileira nem no mundo, não se tem responsabilidade nenhuma. E volto a dizer: quanto mais ativo for o Supremo, menor é a preocupação do Congresso com a técnica redacional, com a consistência e a coerência das matérias.

Esse tsunami legislativo está estimulando um Brasil
contra o Brasil?

É lei contra lei. E volto a insistir, temos um governo que não governa e precisamos que o governo governe. A gente precisa de um Congresso Nacional que tenha mais transparência, coerência e responsabilidade.

Como um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal, dá para dizer que ela acabou, como o teto de gastos, que não durou nada?

A Lei de Responsabilidade Fiscal é uma lei de princípios, não de contas públicas, que acreditávamos que viria em seguida. Mas, com certeza, e LRF continua viva. Não é o ideal, pois continua incompleta 20 anos depois. Tem vários aspectos da lei que não foram adotados, teto de gastos, revisão periódica de gastos, conselho fiscal, premiação para governadores e prefeitos eficientes. Mas o mais importante nisso tudo, na minha opinião, é levar a Lei de Responsabilidade Fiscal para o código, acrescentar o que faltou ser normatizado e avaliar que muito do que está ali não está sendo cumprido. É muito importante envolver nesse processo os tribunais de contas, o Ministério Público, o Judiciário.

Há etapas a cumprir, então.

Costumo dizer que, se a LRF não é uma pirâmide do Egito que se constrói e fica ali parada, precisa ser modernizada e se tornar mais eficiente. Mas eu acho que ela não só sobreviveu, como a estruturação e a lógica dela ainda são as mais adequadas. Tanto é que, se formos ver o debate europeu, de que vários países não estavam cumprindo as regras fiscais antes da pandemia, a proposta é de uma construção próxima do que é a estrutura da Lei de Responsabilidade Fiscal brasileira. Agora, vale ressaltar que o que temos hoje (no Brasil) é a calamidade de governo, e não há lei de responsabilidade fiscal que sobreviva a isso.

O senhor tem proposto, com outros especialistas, como Leonardo Ribeiro, um novo arcabouço fiscal no Brasil. O que é isso?

Estamos propondo fazer um novo código fiscal. Tivemos um Código de Contabilidade Pública que, curiosamente, está completando 100 anos. As autoridades se preocuparam em organizar a contabilidade pública, criaram o Tesouro Nacional, que depois some, e ordenaram como se fazia as contas. Tudo muito direito, de inspiração portuguesa. Na Constituinte, o hoje senador José Serra, que foi o relator da matéria fiscal, chegou a usar, em seu relatório, a figura do código de finanças públicas. Quando foi para sistematização, disseram que não poderia usar a palavra código na Constituição, então, virou lei complementar de finanças pública, que é a origem da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Por que esse código fiscal é importante?

O código não é um uma lei qualquer, nem uma lei complementar qualquer. Pouca gente sabe disso. Pelo que está na Constituição, o código é uma lei que consolida várias medidas e regras em torno de uma matéria, que tem uma tramitação especial dentro do Congresso. Para se ter uma ideia, não se pode tramitar mais que dois projetos de códigos simultaneamente. E, também, não se pode aprovar mais do que dois (em um ano). Isso quer dizer que, ao contrário do que possa parecer, é mais difícil aprovar um código do que emendas constitucionais. Somente neste ano, de nove emendas constitucionais, sete tratam de matérias orçamentárias e fiscal. Isso porque estamos no meio do ano.

A tramitação de código fiscal evitaria essa farra tributária?

O código força o Legislativo a ter uma tramitação mais lenta, porque exige mais discussão, e tem de juntar todas as propostas referentes à mesma matéria num só lugar. Ao juntar, mesmo que não mude nada do que está valendo, será forçado a buscar coerência, consistência em relação ao que se tem hoje na Constituição e em leis complementares. E, também, cobrir o furo. O mais importante de tudo é que estamos falando em Orçamento público, aprovando emendas como a que coloca um teto para as despesas. Só que a emenda não define despesas. As despesas são definidas numa lei de 1964, a 4.320. Ela foi decretada 15 dias antes do golpe militar. Quer dizer: teve o golpe militar, acabou a Ditadura Militar, restabeleceu-se a democracia e continuamos tratando as contas e as coisas públicas com uma lei que tem mais de meio século. Isso não tem cabimento nenhum.

E o Congresso não toma providências.

Ninguém no Congresso se interessa por isso porque é uma matéria técnica e, o principal, na hora que se tiver uma lei regulando, colocando princípios sobre como se faz o Orçamento, não se terá a liberdade de hoje para se fazer o Orçamento como se bem entender. É logico que a lei virá do Congresso, sujeita à sanção presidencial, podendo ser questionada no Supremo, mas será uma lei que coloca uma parametrização. O que estamos propondo é que esse quadro de referência cubra toda a matéria fiscal para consolidar e para dar mais harmonia e estabilidade, e não o que a gente está vivendo hoje, em que se aprova emenda constitucional a qualquer momento, de qualquer jeito, o que faz com que os ordenadores de despesas nem saibam o que vale e o que não vale e o que é mais adequado.

Isso explica a péssima qualidade dos gastos públicos no país?

Primeiro, falta uma boa regulação de instituições coerentes, consistentes e modernas. Segundo, temos uma prática de administração pública que é, sobretudo, não ter muitas métricas, não definir direito o que é objetivo, meta. E, o mais importante, não avaliar e não reavaliar. O que foi feito, está feito. O mais normal é se ter o Orçamento implementarista, o que eu já gastei no ano passado vou continuar gastando e botar um pouco mais. O bom administrador é aquele que consegue, no mínimo, gastar mais do que gastou antes. E não há essa preocupação da avaliação. Não é só com o que se gastou, mas com que se gastou, quanto custou. Quanto custa um aluno na escola pública, um paciente sendo atendido pelo SUS, um deputado, um senador? Hoje, não se consegue chegar ao quanto custa, pois não se sabe como se apura corretamente a despesa, como coloca transparência. A avaliação do gasto público, combinando reformas constitucionais, está dentro do que estamos propondo: concentrar as atenções num código fiscal, com mudanças de práticas e premiação das gestões públicas bem-feitas.

Nesse processo, o uso da tecnologia pode fazer a diferença?

O Brasil pode colocar o Orçamento público dentro do celular, georreferenciado, no país inteiro, seja o do governo federal, seja os de estados e municípios. Com isso, quem estiver passando em frente a uma escola poderá ver quanto ela custa, quem está dando aula nela, quantos alunos. Tenho certeza de que o cidadão-eleitor mudará sua posição em relação ao governo, que passará a ter de se explicar. Para ser franco, o Orçamento, hoje, é quase secreto como um todo, não são só as emendas de relator. Tem o que a gente chama de Orçamento secreto e o resto que é uma caixa-preta, um negócio monstruoso, enorme.

O Orçamento é mal concebido?

O Orçamento brasileiro é um dos mais detalhados do mundo, mas não adianta ser tão detalhado se eu não consigo ver o que interessa. Ah, o parlamentar quer fazer emenda, tudo bem, pois foi eleito para defender a sua região. Mas ele tem de explicar o que foi que ele defendeu, a emenda foi para quê? O Orçamento georreferenciado permite comparações. O Brasil tem tecnologia para fazer isso. E em poucos países do mundo a população usa tanto internet no celular como aqui. É possível interagir com o poder público. Enfim, temos condições de combinar mudanças institucionais que fortaleçam as regras fiscais como um choque radical de governança pública. (Vicente Nunes)

Notícias pelo celular

Receba direto no celular as notícias mais recentes publicadas pelo Correio Braziliense. É de graça. Clique aqui e participe da comunidade do Correio, uma das inovações lançadas pelo WhatsApp.


Dê a sua opinião

O Correio tem um espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores. As mensagens devem ter, no máximo, 10 linhas e incluir nome, endereço e telefone para o e-mail sredat.df@dabr.com.br.

Tags