Seja pela manada de cavalos selados não montados nos últimos anos, seja pelo disparate das ideias da atual gestão — da "imunidade de rebanho" como política de saúde na pandemia, o que elevaria a mais de milhão as mortes devidas à covid, 680 mil e contando, ao voto impresso como coadjuvante da urna eletrônica —, fez-se e ainda se faz de tudo, com método e muito zelo, para distrair as atenções dos problemas seculares que algemam o desenvolvimento do país.
O show de despautérios deverá seguir em cartaz até as eleições. Os cacos da semana incluíram esquetes de humor, como a ideia de filmar o eleitor na cabine de votação ou o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aplicar à contagem do voto o sistema de apuração da Mega-Sena. A insanidade é contagiosa.
Em audiência na Câmara, o ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira, defendeu o voto em cédula em algumas seções eleitorais em adição ao voto digitado. Se a contagem não batesse, haveria indício de fraude. Ele desconsiderou que o próprio eleitor poderia digitar um número na urna e escrever outro na cédula em papel.
Por que discutimos um sistema contra o qual jamais se comprovou a mais remota irregularidade e não preocupa os milhares de candidatos a alguma função eletiva nestas eleições? Só Bolsonaro, eleito oito vezes pelo mesmo sistema, se diz incomodado. Ele segue o script de Donald Trump, que um ano antes de ser derrotado à reeleição saiu a dizer que só uma fraude o despejaria da Casa Branca. Bolsonaro não nega que o admira e que é influenciado pelo seu estilo autocrático.
É isso que fez a maioria lúcida do país despertar do sono profundo e assinar manifestos em defesa da democracia e da urna eletrônica.
Derrotado, Trump chamou uma multidão a Washington e a incitou a invadir o Capitólio para tentar impedir o Congresso de homologar Joe Biden como novo presidente dos Estados Unidos. Pelo que afirmou, Bolsonaro espera a mesma energia negativa na comemoração de 7 de Setembro em Brasília e, à tarde, em Copacabana, no Rio de Janeiro.
Até aqui está tudo às claras, mas mais como blefe. No bastidor do poder, a informação é de que ele poderá fazer o que for, mas só se reelegerá se tiver votos suficientes, apurados pelo TSE. O resto é farsa. Gritos, tumultos, piruetas não vão eleger ninguém.
De inspiração a decepção
Preocupante, de fato, é estarmos na véspera de outra eleição geral e nenhum dos candidatos a cargos majoritários com chances reais de se eleger se dispor a discutir as razões de o país ter regredido à condição de economia exportadora de minérios, petróleo e produtos agrícolas não processados, como grãos de soja, milho e café.
Um país gigante com população miúda, 26 milhões de pessoas, como a Austrália, onde tudo está resolvido, da educação à infraestrutura, pôde se dar ao luxo de prescindir de indústria sofisticada, tipo o setor automotivo, e continuar vibrante, gerando empregos e renda.
Outra coisa é um país com território também gigante, pouco maior que o da Austrália, mas com população mais de oito vezes maior, com tudo por fazer na infraestrutura, com dezenas de milhões de pessoas sem educação adequada, assumir uma atitude blasé com sua indústria.
E pior: jamais ter escarafunchado o que fez a economia com a maior taxa de crescimento no mundo nas décadas de 1950 a 1970, a ponto de a China pós Mao Tsé-Tung ter se inspirado no nosso modelo para se abrir ao capital estrangeiro, ter perdido o bonde da história.
Deu-se o inverso: a economia da China está prestes a ultrapassar em tamanho, diversidade e sofisticação tecnológica a dos EUA, se é que já não passou, e a do Brasil, que até 1980 estava à frente da chinesa, sobretudo pelo dinamismo industrial, ficou para trás.
Parceria Estado e privado
Enquanto não pacificarmos as causas do malogro do desenvolvimento nos governos militares, quando o país declarou moratória da dívida externa e nunca mais conheceu taxas robustas de crescimento puxado a investimentos sempre acima de 20% do PIB, não haverá um ciclo de prosperidade como desfrutam China, Índia, Indonésia, Vietnã etc.
Isso envolve uma integração entre a gestão do Estado, representada pelos seus quadros permanentes, os políticos eleitos, o que inclui o governante da vez, o empresariado e as representações sociais.
É o que a nova direita não trumpista do Partido Republicano nos EUA descobriu, convergindo a sua visão econômica com a do social liberalismo do Partido Democrata, levando ao voto bipartidário que aprovou o relançamento da política industrial, com investimento de US$ 280 bilhões, além de crédito tributário, para fazer renascer a indústria de semicondutores e a pesquisa e desenvolvimento (P&D).
Nenhum país, por menor que seja, resiste a mais de duas décadas de tentativas de políticas de austeridade, com leis malogradas com a intenção de disciplinar o desperdício dos dinheiros públicos. Foram ao brejo o investimento com fonte orçamentária e políticas sociais, quando o que havia e há a corrigir é o sistema político — de partidos, que não o temos comme il faut, à qualidade dos eleitos.
A decadência da verdade
O mundo já entrou noutra fase de transformações disruptivas, como demonstra o conflito geopolítico entre as democracias do Ocidente e China, Rússia e seus aliados, enquanto discutimos falsos problemas. Hoje, a ameaça global é o embate democracia versus autocracia.
Desafios internos também são imensos, com boa parte da população deixada para trás e só lembrada em ano eleitoral com a migalha não includente de forma estrutural dos auxílios sociais. Os avanços da tecnologia, além disso, implicam riscos. Alguns têm "potencial altamente destrutivos", como diz estudo da Rand Corporation, think tank independente mantido pelo Departamento de Defesa dos EUA.
Pode-se sintetizar "um novo vírus do zero", segundo Jason Matheny, presidente da Rand, "por US$ 100 mil, enquanto desenvolver uma vacina custa mais de US$ 1 bilhão — uma assimetria de custo de 10 mil para 1, e não sabemos como consertar isso". No Brasil, o governante questiona as vacinas, e reaparecem doenças erradicadas.
É o que o estudo da Rand chama de "decadência da verdade", o papel cada vez menor de fatos e evidências na vida pública. Os manifestos pela democracia são relevantes. Mas serão muito mais se funcionarem como um despertar da sociedade contra nossa erosão civilizatória. Fato: carecemos de lideranças visionárias. Ou a sociedade força as mudanças ou elas não virão. É simples assim.
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