Orçamento

Governo estuda criar limite para endividamento em vez do teto de gastos

Analistas destacam que discutir um novo arcabouço fiscal é imprescindível, mas momento é inoportuno

Rosana Hessel
postado em 14/08/2022 06:00 / atualizado em 15/08/2022 14:43
 (crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)
(crédito: Jefferson Rudy/Agência Senado)

Historicamente, o Brasil não consegue controlar gastos e as tentativas de conter o aumento desenfreado das despesas não têm durado muito. É o caso da Emenda Constitucional 95, que criou o teto de gastos (que limita o aumento das despesas à inflação) e mal consegue se manter em pé durante o atual governo. Após alterar a regra três vezes desde 2020, o governo estuda um novo arcabouço, criando um limite para a dívida em vez das despesas. Para analistas, essa mudança é inevitável, mas o momento é inapropriado.

A proposta que vem circulando desde a semana passada está quase pronta e, de acordo com técnicos do governo, será apresentada ao ministro Paulo Guedes, "em breve". A ideia seria permitir um crescimento real das despesas quando a dívida pública bruta estivesse entre 60% e 80% do Produto Interno Bruto (PIB). Mas analistas veem a discussão como mais uma medida eleitoreira para abrir espaço para a gastança, em vez de caminhar, de fato, para a prometida consolidação fiscal da agenda liberal.

Atualmente, a dívida pública bruta, em 78,2% do PIB, recuou em relação a 2020, mas permanece acima da média dos países emergentes, de 60% do PIB. Essa queda, segundo eles, é pontual, porque se deve à inflação, que ajuda a corrigir para cima o denominador, o PIB Nominal, e, consequentemente, o numerador diminui. Logo, a tendência é de aumento diante de tantos gastos contratados neste ano e no próximo.

Não à toa, o custo da dívida já está crescendo diante do aumento da desconfiança dos credores na solidez fiscal — que atrapalha o trabalho do Banco Central na condução da política monetária. O sinal amarelo para o custo da dívida está aceso, pois a fatura de juros nominais é crescente e voltou a ficar acima de R$ 500 bilhões — maior patamar desde 2016. E, com a expectativa da taxa básica da economia (Selic), atualmente em 13,75% ao ano, chegar a 14% em setembro, com a piora visível do quadro fiscal, financiadores dos títulos públicos já exigem prêmios de risco cada vez mais altos, o que torna a dívida do governo federal cada vez mais cara e acima de dois dígitos no acumulado em 12 meses.

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pri-1408-tetodegastos Bomba relógio Economia (foto: Valdo Virgo)

Novo arcabouço fiscal

Discutir um novo arcabouço fiscal é um debate inevitável diante de tantos tropeços nas contas públicas. Desde 2014, o país deixou de cumprir a meta de superávit primário e passou a fechar as contas no vermelho. A saída encontrada durante o governo Michel Temer (MDB) para recuperar alguma credibilidade foi a regra do teto, aprovada em 2016. Em 2020, a regra foi deixada de lado por conta da pandemia, mas, no fim de 2021, com a aprovação da PEC dos Precatórios e a mudança da metodologia de cálculo do limite, para abrir espaço de R$ 100 bilhões para novas despesas, como o Auxílio Brasil de R$ 400 e as emendas do relator — cerne da polêmica do orçamento secreto — o governo enterrou de vez o teto, na avaliação de especialistas. E a última pá de cal foi colocada com a PEC Kamikaze ou Eleitoreira, que burlou novamente o teto ao criar uma bomba fiscal de R$ 41,2 bilhões ao ampliar o auxílio para R$ 600 e criar uma série de benefícios, incluindo auxílios para caminhoneiros e taxistas.

"Não existe mais arcabouço fiscal. E, neste segundo semestre, não existe mais respeito ao teto de gastos. A ideia de que o governo é liberal na economia é apenas um discurso. Na prática, é tudo contraditório e sem coerência lógica", vaticina o economista Simão Davi Silber, professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA-USP).

"Desde o primeiro dia, o comportamento do governo foi dizer que quer o segundo mandato. E, para isso, toda a política foi direcionada para criar um grupo de apoiadores em todos os segmentos da sociedade para o projeto político do incumbente", lamenta. Ao contrário das afirmações de Guedes de que o quadro fiscal "está forte", Silber não tem dúvidas do oposto, porque o forte aumento das receitas deste ano, que têm ajuda da inflação, não deve se repetir no ano que vem, pois o crescimento do PIB em 2023 será "insignificante".

Técnicos da equipe econômica, aliás, afirmam que não há espaço no Orçamento de 2023 para a continuidade dessas medidas criadas pela PEC Eleitoreira e, muito menos para uma isenção do Imposto de Renda para quem ganha até cinco salários mínimos (R$ 6.060). A economista Alessandra Ribeiro, sócia da Tendências Consultorias, lembra que o próximo governo, seja ele quem for, vai ter que lidar com as pressões de reajustes dos servidores.

"Está claro que a questão eleitoral está tendo um peso no desenho da política econômica recente. E a percepção do mercado é de que, seja Bolsonaro, seja Luiz Inácio Lula da Silva (PT), haverá mudança no arcabouço fiscal", afirma. Segundo ela, os R$ 11,5 bilhões separados para reajuste de servidores em 2023 não dão para o cheiro das reivindicações para recompor as perdas inflacionárias desde 2019, que, pelas estimativas da Tendências, chega a R$ 75 bilhões.

Analistas também alertam para o forte aumento dos subsídios neste ano. Conforme levantamento feito pelo economista Gabriel Leal de Barros, sócio da Ryo Asset, a conta de renúncia fiscal neste ano deve chegar a R$ 520 bilhões, aumento de pouco mais de 50% sobre a previsão no início do ano, na contramão da proposta de regulamentação do teto — prevista na PEC Emergencial, em 2021, que estimava a redução da fatura de renúncia fiscal para 2% em oito anos. "O governo precisa encaminhar um plano de redução desses subsídios até setembro deste ano", alerta Barros.

Contudo, essa imposição é vista como "piada" entre técnicos do governo, porque não existe punição para o descumprimento. Procurado, o Ministério da Economia não quis comentar o aumento desenfreado de subsídios, em grande parte, para reduzir o custo dos combustíveis nas bombas durante a campanha eleitoral.

"O governo só perde credibilidade quando resolve mudar a regra fiscal toda vez que quer aumentar despesa", frisa Alex Agostini, economista-chefe da Austin Rating. Para ele, essa quarta mudança no teto de gastos é preocupante, porque o cenário atual não é favorável para uma mudança nas regras atuais, que precisam ser cumpridas e não alteradas constantemente.

O economista Juan Jensen, sócio da 4 Intelligence (4i), engrossa o coro de que a questão fiscal é preocupante com o grande número de mudanças no teto de gastos. "Na primeira vez, durante a pandemia da covid-19, foi compreensível, porque era uma exceção devido a uma emergência global. Agora, não se pode colocar tantas exceções na regra", alerta.

 

Alternativa ruim

 

Um consenso entre os analistas é de que o uso da dívida pública como um substituto do teto de gastos não é uma boa alternativa de arcabouço fiscal. “O endividamento está sujeito a uma série de fatores que não são controláveis, como inflação, que, se for muito elevada, ajuda a reduzir a dívida por conta da correção no PIB nominal e abre espaço para uma política heterodoxa”, afirma Juan Jensen, da 4i, defendendo o controle fiscal pelas despesas. “Essa é a beleza  do teto de gastos: é reduzir despesa para fazer superávit primário e fazer o governo não gastar mais do que arrecada”, pontua.

Gabriel Leal de Barros, da Rio Asset, por sua vez, reforça que o governo não teve preocupação em reduzir subsídios e foi na contramão da consolidação fiscal. “O teto foi destruído, e não há nenhuma alternativa racional, equilibrada e qualitativamente melhor do que temos hoje. Não é possível fazer um debate de um novo arcabouço fiscal no afogadilho. É preciso analisar o que funcionou e o que não funcionou e fazer adaptações”, afirma. 

A economista Karina Bugarin, especialista em contas públicas e pesquisadora do Núcleo de Economia Regional e Urbana da USP (Nereus), ressalta que a literatura mostra que, em um sistema democrático, há uma tendência de expansão de incentivos fiscais de forma desordenada e, portanto, é preciso abrir espaços para medidas anticíclicas, quando o aumento de gastos é utilizado apenas para estimular a  economia em momentos críticos.

Nesse sentido, ela lamenta o fato de que a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2023 foi sancionada por Bolsonaro com 37 vetos, sem que nenhum deles tratasse de redução de gastos. “Pelo contrário, o governo manteve uma expansão de gastos permanente, como o orçamento secreto”, completa, em referência às polêmicas e pouco transparentes emendas do relator, uma jabuticaba do governo Bolsonaro que deve passar de R$ 16,5 bilhões, neste ano, para R$ 19 bilhões, no ano que vem. 

Luis Otávio Souza Leal, economista-chefe do Banco Alfa, destaca que esse aumento dos riscos fiscais está no radar do mercado e, assim como o fim do teto de gastos, o próximo governo terá que aumentar a carga tributária para fazer frente aos aumentos de despesas recentes. “A questão agora é o que vai ficar no lugar. Ninguém acredita que o teto será mantido em 2023, seja com Lula, seja com Bolsonaro. Por isso existem duas coisas certas no ano que vem: o teto está morto e teremos aumento de imposto”, resume.

O economista Simão Silber, professor da USP, lembrou que o maior imposto de todos será a inflação, pois, como a maior parte da dívida pública é interna, o risco calote se transforma em emissão de moeda, que gera pressões no câmbio e nos preços domésticos. “Dada a piora fiscal neste fim de mandato, não há uma trajetória adequada do ponto de vista intertemporal que crie confiança nos agentes econômicos, para acreditarem que o Brasil não tem  probabilidade de dar um calote em seus credores”, explica. (RH)

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