Entrevista

"O mercado vai errar feio", diz o ex-presidente do Ipea

O economista Carlos von Doellinger, que deixou o cargo há dois meses, aposta na recuperação do PIB do país e minimiza problemas fiscais. Para ele, analistas que apontam desaceleração da atividade em 2023 não fazem cálculos corretos e "têm os olhos no retrovisor"

Rosana Hessel
postado em 08/09/2022 05:45 / atualizado em 08/09/2022 05:46
Carlos Von Doellinger, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Economica Aplicada -  (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)
Carlos Von Doellinger, ex-presidente do Instituto de Pesquisa Economica Aplicada - (crédito: Carlos Vieira/CB/D.A Press)

Integrante da equipe de transição do governo Jair Bolsonaro (PL), em 2018, e um dos conselheiros do ministro da Economia, Paulo Guedes, o economista Carlos von Doellinger deixou o comando do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) há cerca de dois meses, mas continua sendo consultado pelo antigo chefe. Assim como Guedes, ele não poupa críticas aos analistas do mercado que fazem previsões diferentes das do governo para a economia. "Eu não quero ofender. Os analistas do mercado vão errar feio. O que, aliás, não é novidade, porque eles estão sempre olhando pelo retrovisor", afirma. "Que eu saiba, são raros os que têm formação com doutorado em métodos quantitativos e análise econométrica", acrescenta.

Após a surpresa do crescimento de 1,2% no Produto Interno Bruto (PIB) do segundo trimestre de 2022, divulgados no início do mês pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o otimismo de von Doellinger aumentou. Ele acredita que é possível uma alta de mais de 3% do PIB neste ano, e um número entre 3% e 3,5%, no ano que vem. A mediana das previsões do mercado é de 0,47%, conforme o último boletim Focus, do Banco Central, divulgado na segunda-feira.

Em meio às discussões sobre um novo arcabouço fiscal, ele considera inevitável a mudança da regra do teto de gastos, que "vai ser superado". "Meu palpite é que vamos evoluir para uma coisa mais flexível do lado tanto da receita como da despesa, e com deficits mais gerenciáveis", afirma.

O economista reconhece que o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa) de 2023, enviado pela equipe econômica ao Congresso, em 31 de agosto, foi apresentado para cumprir a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e deverá sofrer alterações durante a tramitação. "O Orçamento que está aí foi o que tinha que ser apresentado por obrigação legal", diz. Ele critica as polêmicas emendas do relator-geral (RP9), ou "orçamento secreto", e atribui a responsabilidade ao Congresso. "Quem instituiu isso foram os congressistas", frisa.

A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio:

A alta de 1,2% no PIB do segundo trimestre surpreendeu, mas o mercado alerta para a desaceleração em curso. Até que ponto os dados de crescimento são sustentáveis?

O ministro Paulo Guedes tem mostrado otimismo. Realmente, houve uma virada boa. As previsões para o ano que vem são de crescimento de 3% a 3,5%, com a inflação e a situação fiscal bem mais confortáveis. Claro que tudo isso é sempre sujeito a instabilidade, e o desempenho prospectivo para o próximo ano, depois da campanha eleitoral, entra em um mundo diferente, e também terá suas consequências. Mas, no momento, acho que está bem encaminhado.

Quando olhamos os dados do PIB acumulado em quatro trimestres, há uma clara desaceleração em vários indicadores, como consumo e investimentos. Dá para ser otimista em um cenário de desaceleração interna e global? E com a perspectiva de juros de dois dígitos até o fim do ano que vem?

Não é essa a informação que eu tenho. No segundo trimestre, o PIB acelerou, e tudo indica que vai terminar (o ano) acima de 3%. Os dados do IBGE estão muito defasados.

Os dados do IBGE estão incompletos, de fato. Não publicaram, por exemplo, os indicadores de poupança. Mas não dá para criticar o órgão quando o número é ruim e elogiar só quando os dados são positivos…

(Risos) O único problema do IBGE é que eles têm uma defasagem grande. Então, eles chegam sempre muito atrasados. Eu sei, porque conheço o IBGE há 30 anos. Em termos de conjuntura, pelo que eu vi nas apresentações do ministro, os dados são favoráveis.

Mas o ministro tem uma série de promessas não cumpridas... Ele prometeu zerar o deficit primário no primeiro ano de governo, arrecadar R$ 1 trilhão com privatizações, fazer as reformas da Previdência, a administrativa e a tributária. Mas só conseguiu aprovar a da Previdência e ainda deixou os militares de fora…

(Risos). É. Ele está devendo. Mas, a reforma da Previdência foi razoável. A administrativa está complicada. E a tributária, também. Eu estou mais preocupado, na verdade, com as reformas para definir outro caminho para o Orçamento e as contas públicas. Está aumentando o movimento para mudar o regime fiscal. A luta tem sido sempre para mudar o regime fiscal e os famosos 3 Ds — a desindexação, a desvinculação e a desobrigação — para soltar as amarras e deixar a economia fluir. É meio difícil, porque nossos congressistas não ajudam muito.

Por que está havendo tanta discrepância entre as previsões do mercado e as do governo? A mediana do mercado para o crescimento do PIB em 2023 é de 0,5%, e os mais otimistas falam em 1%…

Desculpe. Eu não quero ofender. Os analistas do mercado vão errar feio. O que, aliás, não é novidade, porque eles estão sempre olhando pelo retrovisor. São sempre escravos de análises de regressões. Eles nunca conseguem identificar o "recovery". Isso exige métodos estatísticos sofisticados que essa turma não conhece. Não é para amadores. Que eu saiba, são raros os que têm formação com doutorado em métodos quantitativos e análise econométrica.

Mas existe uma guerra na Ucrânia que não termina e o mundo já está desacelerando. A economia da China, que é o maior destino dos produtos brasileiros, recuou 2,6% no segundo trimestre. As exportações brasileiras já estão em queda. Dá para crescer 3% neste ano e no próximo com essa conjuntura?

O Brasil tem um setor agro muito robusto, que ajuda a economia. A indústria de transformação não é grande coisa, mas o PIB do agro está bombando e está puxando a economia e grande parte de serviços. Eu não quero dizer que o Brasil vai ser uma ilha de prosperidade no meio de uma recessão ou de uma desaceleração. Mas, o fato é que os números, na margem, estão evoluindo muito bem.

Mas o senhor há de convir que a credibilidade do Ipea anda arranhada depois da divulgação do estudo que tenta negar o aumento da pobreza e a existência de 33 milhões de brasileiros passando fome. Até técnicos do órgão se rebelaram e estão judicializando a questão…

Eu entrei no Ipea em 1969. Conheço muito bem aquela casa. Tem, realmente, um grupo ali que é, digamos assim, oposição interna. Isso sempre teve, mas talvez agora tenha um pouco mais, porque tem muita gente jovem que entrou recentemente. E entrou também um pessoal terceirizado e, nessas mudanças, caiu um pouco o nível.

O senhor concorda com esse estudo, divulgado pelo próprio presidente do Ipea, sem passar pelo rito do órgão?

Eu confesso que nem vi com muita acuidade o que ele escreveu. Então, não tenho como avaliar. Oficialmente, eu estou fora do Ipea há dois meses.

E como foi sua saída do Ipea?

Eu mesmo pedi para me afastar do cargo, porque sou aposentado do Ipea faz tempo. Eu era um dos poucos que ainda ia para a sede, presencialmente, porque 90% não aparecem mais. As salas dos escritórios (do Ipea) do Rio e de Brasília estão todas vazias. É um negócio muito deprimente. Dá uma tristeza porque está todo mundo em home office. O serviço público está assim.

O governo enviou o projeto de Orçamento de 2023 com previsões macroeconômicas otimistas, e sem o reajuste de R$ 200 do Auxílio Brasil. Mesmo assim, há uma estimativa de deficit primário de R$ 63,7 bilhões. Estamos diante de mais uma peça de ficção?

O governo estava no limite do prazo de apresentação do Orçamento. Mas isso já ocorreu várias vezes no passado. O governo apresenta o projeto e, depois, faz correções, com base na evolução da receita — aliás, a receita está em uma trajetória de crescimento bastante razoável. Isso certamente vai ser revisto. Sempre foi assim.

O governo não previu os R$ 52 bilhões para o auxílio de R$ 600, mas reservou mais de R$ 80 bilhões de subsídios adicionais, que vão aumentar a conta de renúncias fiscais, em torno de R$ 370 bilhões. Tem espaço para subsídios para a classe média, que tem carro, mas não tem benefício para pobre…

(Risos). Eu vi muito por alto os números do Orçamento. Mas, acho que aquilo foi apresentado para cumprir a obrigação legal e, como eu falei, tudo vai mudar, e muito, antes do fim do ano. Agora, da parte de subsídio teria que ver também porque tem o tal orçamento secreto, que ninguém sabe bem como é que saiu.

O senhor acha correto esse orçamento secreto?

Eu não acho. Mas isso não é culpa do Paulo Guedes. Quem instituiu isso foram os congressistas.

Mas o ministro nunca criticou. Ele tenta minimizar o problema…

Ele não vai bater de frente.

O ministro tem dito que não existe bomba fiscal armada para 2023. Ele foca na redução da dívida pública bruta, mas não faz a ponderação do impacto do aumento de despesas enquanto há muita receita extraordinária, como dividendos. Sem falar do impacto da inflação no aumento do denominador. A dívida está em 77,6% do PIB, mas o volume de R$ 7,2 trilhões é recorde…

A relação dívida-PIB nunca esteve tão baixa quanto está agora. O que interessa é a relação dívida-PIB.

Mas tem muita coisa que não está nessa conta da dívida. As pedaladas nos precatórios, que ainda não se sabe quanto vão custar nos próximos anos. E tem ainda a conta de juros, que deve aumentar devido à alta da Selic. São R$ 35 bilhões ao ano a mais para cada ponto percentual na taxa básica, que já subiu quase 12 pontos desde março
de 2021…

Sim. Mas, se a economia crescer, como estamos apostando, isso tudo vai diminuindo. Olhando a relação dívida-PIB, historicamente, essa taxa nunca esteve tão favorável. Eu não estou vendo essa perspectiva ruim.

A conta de juros está crescendo e já bateu um recorde histórico de mais de quase R$ 560 bilhões…

Eu não quero ver o resultado nominal. Eu quero ver a relação dívida-PIB. Eu estou dizendo que a relação dívida-PIB vai melhorar pelo crescimento real do PIB. A arrecadação está crescendo. O quadro não é tão ruim e eu não sou nenhum ufanista. Já fui muito crítico e acho que, envelhecendo, estou mais leniente. Com a pandemia, a situação ficou horrorosa, mas houve uma recuperação impressionante.

Como o senhor avalia esses quase quatro anos de governo Bolsonaro?

Foi um período conturbado, porque teve pandemia, guerra, teve de tudo. Considerando todas essas mazelas, o desempenho foi bem razoável. Foi muito melhor do que a maioria esmagadora maioria dos países, inclusive da Europa, e até dos Estados Unidos.

Mas o saldo de mortes por covid-19 poderia ser bem menor…

Bom, aí entram outros aspectos, que eu prefiro não comentar.

Como o senhor vê a discussão de um novo arcabouço fiscal para o próximo governo? É possível mudar o teto de gastos sem perder a credibilidade?

O teto foi uma coisa meio emergencial, uma forma de dar um choque para segurar a despesa. E foi meio irracional, porque, na verdade, não se analisou a composição da despesa para fazer uma coisa mais bem estruturada. Vamos caminhar para um outro regime, mais racional do que simplesmente botar um teto e dizer "daqui não passa, se vira". Meu palpite é que vamos evoluir para uma coisa mais flexível do lado tanto da receita como da despesa e com deficits mais gerenciáveis.

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