Entrevista

'O Estado é distante da sociedade', diz economista Francisco Gaetani

Autor de livro sobre os mitos da administração federal rejeita teses como "Estado inchado" e "servidores parasitas", mas ressalta as fragilidades de ministérios de perfil mais social. Para ele, a questão são as entregas feitas pelo Poder Público

As reformas tributárias e administrativas podem ser feitas ao mesmo tempo e são necessárias para o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) cumprir as promessas de campanha, de acordo com o economista Francisco Gaetani, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) e presidente do conselho do Instituto República, entidade do terceiro setor voltada para a modernização do Estado brasileiro e a valorização dos servidores públicos. E, para isso, deve haver vontade política. "É preciso uma reforma administrativa, porque o Estado está muito desorganizado", afirma Gaetani, em entrevista ao Correio.

O economista participou do grupo de transição do meio ambiente. Na semana passada, Gaetani lançou o livro A construção de um Estado para o século 21, em parceria com o cientista político Miguel Lago. "A ideia do livro é desmistificar um pouco o funcionamento do governo federal. Muitas confusões têm a ver com essa má informação, o preconceito, os mitos e a distância", explica.

De acordo com Gaetani, boa parte das críticas ao Estado inchado estão relacionadas à contrapartida que é oferecida ao cidadão. "É diferente de o gasto ser alto. É que esse gasto tem que gerar mais serviços e serviços melhores. E essa é a visão que nós defendemos", explica. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista.

O livro trata de cinco mitos, pode explicar sobre eles?

A ideia do livro é desmistificar um pouco o funcionamento do governo federal. Muitas confusões têm a ver com essa má informação, o preconceito, os mitos e a distância. O Estado é muito distante da sociedade. A sociedade não entende os cinco Poderes. Eu falei cinco, ato falho, porque são três (Executivo, Legislativo e Judiciário), mas temos o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público, que praticamente se transformaram em Poderes, antes do apagão das canetas. E a gente trabalha também com essa parte de serviço público. E se você for ver os ministérios da Educação e da Saúde, até hoje, são dos ministérios menos profissionalizados.

Os senhores tratam no livro sobre o mito do Estado inchado, mas a segunda maior despesa obrigatória no Orçamento é com pessoal.

O Estado inchado tem a ver com o número de funcionários públicos em relação à população. Se pegarmos os países da OCDE, o Brasil está na média, do ponto de vista quantitativo, sem considerar os terceirizados. Quem tem regalias no serviço público não é o Executivo. Se você está falando de regalia, é bom olhar para o Poder Judiciário. E vamos esclarecer: a estabilidade caiu em 1998. O governo demite anualmente, mas o que não há é demissão por desempenho no Executivo. E, nesse caso, é preciso regulamentar a demissão por desempenho. No caso de que o gasto com pessoal seja a segunda maior despesa do Orçamento, depende se vai considerar militares, Previdência, os juros ou não.

E qual é o problema, então?

O problema é que se discute muito a contrapartida do gasto, que deixa a desejar. Mas é diferente de o gasto ser alto. É que esse gasto tem que gerar mais serviços e serviços melhores. E essa é a visão que nós defendemos. No Brasil, ora se dinamiza, ora se vitimiza; ora os coitadinhos, ora são os bandidos parasitas. Não pode ser assim.

Além do Estado inchado, há outros mitos?

Há uma percepção de que você precisa ter "mais Brasil, menos Brasília". É o discurso de Bolsonaro, de Paulo Guedes. Há uma mentalidade centralizadora. Nós somos, no fundo, frutos do Estado napoleônico, francês, italiano e espanhol. E isso leva muitas vezes a um processo de centralização do poder no governo federal, e os processos de descentralização estabelecidos pela Constituição de 1988 não foram implementados. A gente comentava sobre educação e saúde, que são políticas, basicamente, descentralizadas. E, como estávamos falando, os ministérios da Educação e Saúde são dos ministérios menos profissionalizados da Esplanada, em termos de carreiras, em termos de funcionários, em um monte de arranjos de contratação, expediente, temporários e contratados por empresas, cedidos de universidades. Os dois ministérios mais importantes da área social são os que, até hoje, são muito pouco estruturados, pouco profissionalizados. Esse mito mais Brasil menos Brasília não permite um Estado que funcione.

E qual o terceiro mito?

É um mito a questão de que tem ministérios demais. A Dilma chegou a ter 39. O México tem 40 ministérios. Os Estados Unidos têm pouquíssimos. Para nós, aqui no Brasil, a criação de uma instituição sinaliza o comprometimento do governo com aquela audiência, aquele problema, aquele naquela clientela. Agora, hoje, não é mais o que foi no passado. Cria-se e recria-se um ministério com muito mais desenvoltura. O Paulo Guedes fundiu cinco ministérios para criar o da Economia.

Foi um equívoco essa fusão?

Eu acho que depende da política da qual você acredita. Eles têm uma visão mais minimalista do Estado. Então, para eles, unir ministérios da Fazenda, do Trabalho, do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior (Mdic), da Previdência e do Planejamento fazia todo o sentido. Ele achava que não fazia sentido ter o Planejamento. Então, para quem defende um Estado menor, menos intervencionista, faz sentido. Mas hoje, quando forem recriados os ministérios, eles vão ser mais leves, porque a divisão foi feita por parametrizações, de modo que você pode ter mais ministérios com o mesmo número de pessoas. Você não gasta mais com cargos, porque o quantitativo e espaço de valor do pessoal não foi aumentado.

E quais os outros mitos?

Tem o mito de que os funcionários públicos são parasitas. A reforma administrativa é necessária, porque tem aquele engessamento das carreiras e não permite o aproveitamento de pessoal em áreas mais deficitárias. O ministro da Economia apresentou, dois meses atrás, um relatório com resultados das reformas deles, uma redução absoluta de 60.000 funcionários, uma redução de 0,8 ponto percentual da participação da despesa com pessoal no PIB, de 4,2% para 3,4%, o que, a visão dele, são resultado de uma reforma administrativa.

Guedes costumava dizer que fez uma reforma administrativa silenciosa…

Ele basicamente não fez concurso, não repôs as vagas abertas por aposentadoria e não deu aumento. Foram quatro anos sem reajuste. Então, assim fica fácil dizer que fez uma reforma e reduziu custos. Mas por trás disso, também tem uma visão de que tem que enxugar o Estado, de que não tem que se envolver com políticas públicas, como é tradicionalmente a estrutura ministerial. Você não quer trabalhar nem favorecer o capital nem o trabalho. É natural que você extinga o Ministério do Trabalho e o Ministério da Indústria e do Comércio. Eles percebem isso como extinção de demandas da sociedade sobre os recursos públicos. Acreditam que o mercado tem que resolver isso por conta própria. Mas, na pandemia, o Estado precisou socorrer todo mundo.

E o último mito?

O quinto e último mito do governo é de que a carga tributária é elevada. A carga tributária do Brasil não é elevada. Está na média. O problema é a composição da carga. Porque a nossa carga tributária é baixa na renda e alta no consumo. E penaliza os mais pobres. E também a nação tem transferências de imóveis e heranças. Então, existem muitas injustiças na nossa carga tributária, mas não é que ela seja alta. A composição dela é perversa. Nós não tributamos dividendos. Nós não descontamos da saúde para classe média alta, e no sistema privado, tem uma série de mecanismos ali que tornam ela muito disfuncional.

O que a reforma tributária deve fazer, além de corrigir essas distorções?

Tem que desonerar também o capital. Você precisa simplificar o investimento para poder que aquelas empresas tenham mais condições de investimento em relação aos tributos, que a incidência é perversa.

O senhor trabalhou no grupo de transição de meio ambiente. Essa área será estratégica do novo governo?

A agenda de mudança climática é a nova agenda de desenvolvimento global. Por isso, a importância da reestruturação produtiva do país, com uma economia de baixo carbono e da transição energética.

E essa agência para mudanças climáticas, ela vai sair?

Acho que aí existem duas discussões. Havia uma proposta da Marina de criação de uma agência climática no âmbito do Ministério do Meio Ambiente. A proposta que eu e a Izabella concorda é a criação de uma secretaria especial na Presidência da República, porque mudança climática não é assunto apenas do Meio Ambiente em lugar nenhum do mundo. Todos os líderes estão envolvidos nesse ponto, nos Estados Unidos, na Alemanha, na França, no Reino Unido, na China, no Japão… Então, eu acho que você colocar mudança climática apenas no âmbito do Ministério do Meio Ambiente vai repetir o erro e diminuir as expectativas. O importante é haver coordenação para essa agenda na presidência e com o suporte da área econômica. Claro que o ministro tem uma posição e um papel que é político, mas é preciso coordenação. E o locus dessa coordenação é na Presidência.

Pelas sinalizações da equipe de transição, o que podemos esperar? Vamos ter avanços ou retrocessos?

Eu acho que o pessoal precisa saber o estado das coisas mais a fundo. É difícil sem que tudo seja muito bem negociado. A política não responde muito bem aos solavancos. Quanto mais consensual, quanto mais negociadas forem as coisas mais chances a gente tem de ter avanço consistente incrementais. Só que às vezes a gente quer mágica. Mas tudo dependerá da equipe. A equipe que está sendo anunciada, tem muita experiência. O futuro ministro Relações Exteriores, Mauro Vieira, tem o Rui Costa, que foi governador na Bahia há dois mandatos, é um quadro político na Casa Civil. O Fernando Haddad foi prefeito, foi ministro há quase 10 anos e participou de várias eleições. Aí vai depender muito a simpatia do mercado se vai ser diferente.

O senhor falou que é importante fazer não só a reforma tributária mas também uma reforma administrativa. Por quê?

É preciso uma reforma administrativa, porque o Estado está muito desorganizado. Mas não é a reforma que o governo Bolsonaro propôs e que nem pode ser chamada de reforma. Será preciso uma série de reformas. A reforma administrativa que foi para o Congresso nem precisava ser PEC. Veja o caso do Ceará, que é resultado de um trabalho de 30 anos. É um exemplo de continuidade administrativa de governadores de diferentes partidos e tem sido destaque na Educação. Houve um certo entendimento das elites de que tinham que se envolver com a política. Mas o Ceará é exceção. Já o Rio de Janeiro está na outra ponta.

Então, tem um conjunto de temas que podem podem ser encaminhados simultaneamente?

Sim, mas o governo tem que querer. O problema é conseguir avançar nessas questões do governo, mas falta alguém que pense o país. O governo Bolsonaro tem um órgão para isso, que é a Secretaria de Assuntos Estratégicos. Só que ele colocou o general Pazuello lá.

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