União Europeia

Bloco comercial europeu completa três décadas com ameaça de nova recessão

Ao completar três décadas, os 27 países que integram a UE enfrentam inflação em níveis muito elevados e ameaça de nova recessão

Vicente Nunes -Correspondente
postado em 15/01/2023 03:30
 (crédito: Ibrahim Boran/Unsplash)
(crédito: Ibrahim Boran/Unsplash)

Lisboa — O mercado comum europeu completa 30 anos neste mês com muitos desafios pela frente. Os 27 países que compõem o bloco comercial e político registram a maior inflação em mais de duas décadas, e convivem com o fantasma da recessão. Lidam, ainda, com uma guerra entre Ucrânia e Rússia e todas as suas consequências, como a crise energética, e assistem à extrema-direita avançar com um discurso contrário a tudo o que prega o pacto entre as nações.

Há quem veja neste quadro desafiador boas oportunidades para que a União Europeia consolide seus propósitos, tocando um amplo processo de reindustrialização e de reforço de sua segurança. Uma coisa, porém, é certa: mesmo com todas as críticas e os erros na condução do processo de integração, é muito melhor estar dentro do bloco do que fora dele.

"Temos, hoje, um mercado promissor, com moeda forte, o euro, dívidas sob controle e um sistema muito bem estruturado para socorrer os países em dificuldades", diz Miguel Relvas, ex-ministro de Assuntos Parlamentares de Portugal.

Na avaliação dele, ficou claro, durante a crise financeira mundial de 2008 e 2009, e mesmo nos anos mais agudos da pandemia do novo coronavírus, que a União Europeia não está disposta a deixar nenhum de seus membros para trás. E não será neste momento, de forte tensão política e de sérios problemas econômicos, que isso ocorrerá.

Muito pelo contrário. A UE construiu, ao longo dos últimos anos, mecanismos ainda mais poderosos para intervir em momentos de grave crise a fim de preservar suas conquistas e não se furtará de lançar mão de novas ações. "Países mais frágeis, como Portugal, avançaram muito desde que aderiram ao mercado comum", acredita.

O Produto Interno Bruto (PIB) do mercado comum europeu supera os 15 trilhões de euros, com cerca de 500 milhões de consumidores. Nos últimos anos, o crescimento econômico tem sido modesto, aquém das necessidades para garantir avanços sociais, especialmente nas nações mais pobres. Neste ano, a previsão é de incremento de 2,3%, número que pode ser revisto para baixo a depender da política de juros conduzida pelo Banco Central Europeu (BCE).

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pri-1501-pib (foto: pri-1501-pib)

A taxa vem subindo desde o ano passado e situa-se, atualmente, em 2% anuais. Para Sandra Utsumi, diretora executiva do Banco Haitong em Portugal, o ideal seria que o custo básico do dinheiro na zona do euro já estivesse entre 4% e 5% ao ano, de forma a levar a inflação para patamares mais confortáveis. O custo médio de vida fechou, em 2022, acima de 10%.

"As perspectivas econômicas para o bloco europeu não são nada animadoras. O risco de recessão é latente e não enfrentar a inflação de forma mais contundente pode custar caro", alerta a economista. Sandra reconhece, porém, que tais problemas estão longe de desestabilizar a União Europeia. Mesmo nos países em que a extrema-direita chegou ao poder, como Itália, Hungria e Polônia, não se vê intenção concreta de deixar o mercado comum.

"Esses países criticam muito o modelo adotado pela UE, mas sabem que uma saída do bloco custaria muito caro, com explosão da dívida pública, fechamento dos mercados e enorme descontentamento popular", explica. "De qualquer forma, posições extremistas estimulam questionamentos desnecessários, que prejudicam a boa convivência dos países", acrescenta.

Desigualdades gritantes

Professora de Relações Econômicas Internacionais da Universidade de Lisboa, Carla Guapo acredita que o momento é estratégico para o bloco comum europeu superar as vulnerabilidades evidenciadas nos últimos anos. No entender dela, mais do que econômica, a grande variável que se coloca no caminho da UE é geopolítica.

"É preciso olhar para trás e lembrar que a Europa sempre viveu em guerra. Só conseguiu a pacificação nos anos de 1950. São 70 anos de paz, um período muito curto no histórico da região", assinala. O grande trabalho a ser feito para manter a estabilidade política, acredita ela, é reduzir as desigualdades entre os países do bloco. "A disparidade é grande. O PIB per capita dos países mais ricos é quatro vezes o dos mais pobres. Isso faz com que os objetivos sejam diferentes", destaca.

Para a professora, diante do tamanho desafio de garantir melhores condições de vida, de dar perspectivas aos jovens dos países mais pobres, não é o momento de o bloco europeu ampliar o número de membros, sob o risco de a desarmonia aumentar. "Vários países que ingressaram no mercado comum nos últimos anos, como Hungria e Polônia, não cumprem compromissos básicos, como manter a democracia. Isso é um risco", ressalta.

"A história mostra que o alargamento precipitado do bloco pode levantar sérios problemas. Veja o que ocorreu em 2004, quando 10 países da Europa Central e da Europa Oriental entraram para a UE", lembra. Ela frisa, ainda, que o alerta vale, principalmente, para o caso da Ucrânia, que pediu adesão ao mercado comum. "Não é hora de se falar disso", enfatiza. A lista de pedidos de ingresso ao mercado comum inclui Moldávia, Montenegro, Bósnia Herzegovina e Macedônia do Norte.

Mestre e doutora em ciências políticas pela Universidade de Genebra, na Suíça, a professora Luísa Godinho reconhece que é um ativo importante fazer parte do mercado comum europeu. Ela destaca, porém, que os desafios para se manter a unidade do bloco aumentaram muito na atual conjuntura. Os países do Sul da União Europeia viram a pobreza aumentar.

Há, nessas regiões, sérias dificuldades de sustentabilidade financeira, o que manchou o sonho do bloco de ser um espaço para aproximar as economias e as sociedades. "As conquistas ficaram aquém do esperado inicialmente. Por isso, é preciso avançar rapidamente para que os ganhos sejam reais e para todos. Chegou a hora da verdade, inclusive para países que não cumprem regras básicas como o respeito aos direitos humanos", complementa.

São várias propostas para que a União Europeia dê um novo e esperado salto. Luísa acredita que esse movimento passa pela criação do que ela chama de federalismo fiscal, para harmonizar de vez os regimes tributários e as contas públicas. As regras em vigor hoje estipulam limites para o deficit público de no máximo 3% do PIB, e para a dívida, de 60% do PIB. "Mas isso não é suficiente. É preciso um mecanismo mais amplo para proteger os países da periferia", detalha. Ela admite, contudo, ser difícil falar em regras mais rígidas neste momento tão complexo, com uma guerra em uma das portas de entrada na Europa, com baixo crescimento econômico e os preços da energia nas alturas.

Imigração e Mercosul

Sandra Utsumi chama, também, atenção para a séria questão da imigração, tema que desperta sentimentos nada abonadores, como a xenofobia, em parte da população. "Ainda há muitas dúvidas sobre como incorporar à sociedade os milhões de imigrantes que aportaram na Europa nos últimos anos", afirma.

"Temos de lembrar que parcela significativa dessas pessoas têm origem em tragédias em seus países, como Síria e Afeganistão e, mais recentemente, da Ucrânia. São refugiados, envolvem questões humanitárias. Nada foi feito de forma organizada, não foram pensadas estratégias para integrar os imigrantes à economia e à sociedade, aumentando o custo social e fiscal", emenda. Esse fluxo de pessoas, por sinal, está por trás do forte crescimento da extrema-direita na Europa.

Miguel Relvas, ex-ministro português, acredita que, independentemente dos conflitos atuais, o bloco europeu terá de aprender a lidar com os imigrantes, pois precisa deles para sustentar as atividades econômicas. "Os imigrantes são necessários diante do envelhecimento da população europeia", ressalta.

Mas será preciso qualificar essa mão de obra, pois a União Europeia optou por se reindustrializar depois de se ver dependente da China, durante a pandemia de covid-19, e da Rússia, após o ataque à Ucrânia. Na visão da professora Luísa Godinho, para um bloco econômico que deseja ser um player do mercado, disputando com potências como Estados Unidos e China, a produtividade do trabalho fará a diferença. E os imigrantes fazem parte desse jogo.

Especialista em política internacional, Igor Galo assinala que, enquanto a União Europeia busca consolidar as importantes conquistas dos últimos 30 anos, outros blocos comerciais, como o Mercosul, que reúne Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, tentam selar acordos para usufruir de vantagens competitivas.

Essa parceria está sendo tentada há 20 anos e acredita-se que, agora, com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República, os nós sejam desatados, principalmente por causa dos compromissos claros com a preservação do meio ambiente. A UE se recusava a negociar avanços no acordo com o Mercosul tendo Jair Bolsonaro à frente do governo brasileiro.

Enquanto os países ao Sul do Equador veem perspectivas de ganhos com um acordo entre a União Europeia e o Mercosul, no Reino Unido o clima é de desalento. A decisão de romper com o bloco europeu, o fatídico Brexit, levou a população britânica a enfrentar a mais grave crise econômica em muitas décadas. Pior, fez ressuscitar movimentos separatistas — a Irlanda permaneceu no mercado comum —, principalmente na Escócia. Pesquisas mais recentes apontam que 60% da população do Reino Unido deseja retornar à União Europeia.

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