Entrevista

"Reforma tributária não vai funcionar", afirma economista Paulo Rabello

Ex-presidente do IBGE e do BNDES diz que propostas em avaliação no Congresso, com apoio do governo, podem complicar ainda mais, em vez de simplificar, o sistema de impostos. Para ele, sem redução do peso do Estado, carga fiscal vai aumentar

MARCÍLIO DE MORAIS
postado em 16/04/2023 03:55 / atualizado em 16/04/2023 10:40
 (crédito: Luis Nova/Esp. CB/D.A Press)
(crédito: Luis Nova/Esp. CB/D.A Press)

A proposta de Reforma Tributária encampada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a partir das propostas de emenda à Constituição — PEC 45, que tramita na Câmara, e PEC 110, no Senado —, podem aumentar a carga tributária para a população de baixa renda e ameaçam implantar um sistema que, a título de simplificar, apresenta lacunas que tornem o “manicômio tributário brasileiro” ainda mais complexo. A avaliação é do economista Paulo Rabello de Castro, para quem “essa reforma tributária não é reforma, na realidade é mais uma arrumação”.

O ex-presidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), e do Instituto Atlântico, entidade sem fins lucrativos formuladora de políticas públicas, fundada em 1993, Rabello de Castro lembra que o sistema atual de tributação foi modificado, principalmente, a partir do Plano Real, “como resposta torta para a dificuldade do Brasil, onde o ajuste político se faz com a ampliação constante da despesa do Estado, sempre acima e num ritmo superior ao crescimento do PIB. Ou seja, o PIB é cada vez menos capaz de sustentar a máquina estatal”.

Autor do livro “O mito do governo grátis”, ele defende a proposta de reforma tributária do Instituto Atlântico, que considera mais fácil de ser implantada do que a das PECs, que estabelecem período de transição, com a coexistência do imposto novo sobre o consumo com a tributação que será substituída. Para ele, a reforma tributária do governo não garantirá crescimento, como afirma a equipe econômica. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Estado de Minas, jornal dos Diários Associados.

A pergunta básica de todo cidadão é por que desde antes do Plano Real se fala na necessidade de reforma tributária, mas ela nunca foi feita. Qual o problema do sistema tributário brasileiro?

O principal problema, disparado, é o excessivo peso dos tributos sobre o consumo, em relação à carga incidente sobre renda e propriedade. O Brasil está estagnado em relação ao mundo, e muito mais em relação aos emergentes, por um conjunto de problemas. E a questão política e institucional é até mais grave do que esse manicômio tributário. Na lista de fatores econômicos, que têm aspectos institucionais envolvidos, é possível citar o sistema tributário como a representação do nosso descaminho. A representação maior da ausência de diálogo no plano político entre representante e representado.

Mas há ainda um emaranhado de impostos e regras.

Esse emaranhado de impostos surge como uma resposta torta para a dificuldade de enfrentar o que seria, numa síntese, a questão política brasileira, que é um Estado, que, no dizer do jurista Yves Gandra,”não cabe no PIB”. Ou seja, desde antes do Plano Real, mas muito consistente a partir dele, o ajuste político se faz com a ampliação constante do Estado, e quando falo do Estado falo da despesa do Estado sempre acima e num ritmo superior ao crescimento do PIB. Ou seja, o PIB é cada vez menos capaz de sustentar a máquina estatal, porém, com um fator diabólico: a tributação. A tributação, através de especialistas competentes, consegue dar a volta no cidadão fazendo com que a receita consiga validar a obesidade estatal. E são três esferas de governo, e nisso o Brasil se distingue do resto do mundo. Portanto, temos, na realidade, três facas para cortar a mesma carne.

Mas e a simplificação da cobrança que está sendo proposta?

Não nos iludamos, não haverá reforma tributária quer segmentada — essa não tem a menor condição de passar — quer ampla, que dê jeito na estagnação brasileira. E é por isso que não é a bala de prata de que fala a ministra [Simone] Tebet. Se não houver um reconhecimento de que o Estado é obeso, e que precisamos fazer dieta nesse ente estatal, que além de obeso é improdutivo, não há como sair da estagnação. A cada real que o setor privado recolhe ao ente público, seja municipal, estadual ou muito pior, se for Brasília, ele perde potência produtiva. Esse real que ficaria na sua mão, ou na mão de um empresário, teria alocações muito mais bem boladas e eficientes no plano econômico.

Do ponto de vista das empresas, o que isso representa?

Temos contribuições agressivas sobre a receita bruta das empresas, sem perguntar se elas estão vendendo bem ou não, se elas estão lucrando no processo produtivo ou não, ou ao menos perguntar se elas estão realizando a transação completa para então enfiar o sistema PIS/Cofins, que são contribuições que atingem a receita e que, portanto, vem em cascata com outros tributos. Como se costuma dizer no jargão tributário, ela vem calculando por dentro e a taxação já inclui o imposto. Recentemente, o STF, ainda que tardiamente, decidiu que o ICMS não constitui essa base impositiva, mas há décadas essa esperteza está montada. Agora, até em boa hora, essas propostas que estão aí estão falando em calcular a tributação como deve ser, por fora, ou seja, cada uma utilizando o custo aquisitivo dos produtos, livre da própria tributação. Mas isso, obviamente, vai engordar a alíquota que será necessária para equilibrar, coisa que provavelmente eles calcularam mal.

A alíquota única não vai diminuir a complexidade?

A alíquota única de que tratam as PECs 45 e 110, de única, não tem nada. Esse é um aspecto pouco visualizado. Na ânsia de estabelecer uma concordância de entes federados a proposta, que é um Frankenstein, trata de fazer essa alíquota única, digamos que seja 25% (que não será), ser dividida em três parcelas: a federal, a estadual e a municipal. Está calculada a participação de 14 pontos para os estados, 9 pontos para a União e 2 pontos para as municipalidades. Essa seria a partilha, mas já se sabe que os principais estados e municípios não terão capacidade nas suas máquinas públicas com essas participações. Então, as PECs propõem que cada estado e município tenha liberdade de fazer o ajuste necessário. Nesse momento, Lavras vai colocar 2,5 e o [governador Romeu] Zema, que está apertado, com deficit crônico, vai botar 14,7 e a União vai ficar com os 9 pontos. Portanto, tem oneração de 0,7 do Zema e 0,5 de Lavras, o que dá 1,2 de oneração além dos 25%. É óbvio que as unidades federadas mais poderosas vão ter mais condição de impor ônus Então, vamos ter que consultar um almanaque, porque há 5.570 municípios. Portanto, a alíquota única não existe. Imagine o grau de confusão que vai se instalar na hora em que esse sistema novo entrar em operação.

Como o senhor avalia a proposta do cashback tributário?

Aqui a esperteza tem nome. A mais recente manifestação nas propostas oficiais é pintar esse santo do pau oco de cashback, um termo de promoção comercial que, no supermercado e no shopping, é um cupom de desconto. Será um arremedo de desconto, porque, na realidade, pretende-se elevar brutalmente a taxação sobre a cesta de consumo da população mais pobre e, depois, identificá-la se possível, dando a devolução, que é o cashback. Uma vez instalada essa monstruosidade, ela vira um objeto feroz de manipulação política.

O governo fala em um período de transição para acomodação do imposto novo com o imposto velho. Não há risco de haver bitributação?

Claro. O país vai sofrer muito, porque vai aumentar o nível de litígio, que já é disparado o maior do mundo na área fiscal. A meu ver, estamos muito próximos a uma situação insurrecional, porque vai se tornar absolutamente inaceitável, intolerável, e as pessoas vão para as ruas. Eu não acredito que a racionalidade vá prevalecer, porque o Congresso, instado a entregar essa bala de prata, ou de festim, para o governo federal, que precisa dizer que realizou algo — assim como o anterior realizou a pior reforma da Previdência de todos os tempos. Essa reforma tributária não é reforma, na realidade, é mais uma arrumação. Quando as pessoas perceberem que o número de tributos aumentou em vez de diminuir, nós teremos o primeiro elemento básico para uma fagulha insurrecional, para uma revolta popular.

Do ponto de vista da carga total, a proposta de reforma tem neutralidade, sai de 32% de carga tributária e fica perto de 30% com a proposta do Bernardo Appy, mas estamos muito acima dos EUA e abaixo da média da OCDE? Pretende-se manter uma carga constante?

Não há isso, porque, ao mexer numa parte importante, que é a tributação do consumo, deixando outras partes, como variáveis de ajuste, a tendência é haver uma escalada nessas variáveis de ajuste. O governo e o ministro [Fernando] Haddad já deu sinais disso e disse que, embora sem elevar a carga, vai correr atrás de quem não está pagando. Isso, em princípio seria legítimo, mas desde que ele estivesse saindo fora da tributação do consumo, onde ele será 9 em 25. Na proposta do Instituto Atlântico, a gente prevê que a União ela deve, sim, buscar quem ainda não paga tributos sobre a renda, mas exonerando a participação da União nessa infernal tributação do consumo. Esse é o movimento política e moralmente correto.

O que é essa proposta do Atlântico?

É cumprir a lei. No Brasil, não se cumprem certos dispositivos legais porque não interessa. Existe um Conselho de Gestão Fiscal determinado no Artigo 77 da Lei de Responsabilidade Fiscal, que é respeitada até pelo PT. O Conselho de Gestão Fiscal teria a participação dos três níveis de governo e seria o equivalente, na área fiscal, ao Conselho Monetário Nacional, que é o órgão máximo na área monetária. Cadê o Conselho de Gestão Fiscal? Não existe. Nunca se conseguiu sua regulamentação no Congresso Nacional. A proposta do Atlântico foi encaminhada por meio de um substitutivo do ex-senador Paulo Bauer (SC), que conseguiu, inclusive o voto da Simone Tebet. Esse substitutivo incluía um teto não de gastos, mas um teto de tributação, um teto de carga, que poderia ser, realisticamente, de 33% (do PIB). Assim, o país estaria bem mais azeitado para o crescimento. A proposta do Instituto Atlântico é trazer da faixa, incluindo o deficit primário, de 35%, 36%, gradualmente para um nível abaixo de 33%, sempre inferior de 33%, nunca acima. Aí, sim você começa a ter um esforço de dieta dos entes estatais.

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