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Entenda proposta de arcabouço fiscal apresentada pelo governo

Projeto de lei complementar que vai ao Congresso amplia exceções a limites de gastos e recebe críticas de economistas

Rosana Hessel
Rafaela Gonçalves
postado em 19/04/2023 04:00 / atualizado em 25/05/2023 19:56
O texto foi apresentado com alguns ajustes em relação ao anunciado anteriormente, como a exclusão de receitas extraordinárias da base de cálculo para o aumento real das despesas -  (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
O texto foi apresentado com alguns ajustes em relação ao anunciado anteriormente, como a exclusão de receitas extraordinárias da base de cálculo para o aumento real das despesas - (crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

Depois de várias idas e vindas, o governo finalmente entregou ao Congresso Nacional, ontem, a proposta do novo arcabouço fiscal, que vai substituir o teto de gastos — emenda constitucional de 2016 que limita o aumento da despesa à inflação do ano anterior. O projeto da lei complementar da nova âncora fiscal foi assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em cerimônia, no Palácio do Planalto, com a presença do vice-presidente do Senado, Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), e do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).

O texto foi apresentado com alguns ajustes em relação ao anunciado anteriormente, como a exclusão de receitas extraordinárias da base de cálculo para o aumento real das despesas. As receitas não recorrentes, como privatizações, concessões, permissões, royalties e dividendos das estatais não serão levadas em conta para calcular os limites de expansão de gastos. Conforme a proposta, as despesas do governo terão crescimento real (acima da inflação) de 0,6% a 2,5%, limitado a 70% das receitas.

A regra ainda incluiu precatórios — dívidas judiciais do governo —, na lista de exceções para o cálculo dos gastos totais, o que está gerando desconfiança sobre a sustentabilidade do novo limite para as despesas

O arcabouço prevê metas de resultado primário (receitas menos despesas) positivos a partir de de 2025. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu as excepcionalidades. "Elas estão na Constituição. A única coisa que nós fizemos foi reproduzir no texto aquilo que já está na Constituição e que não pode ser alterado por lei complementar nem por lei ordinária", disse o ministro a jornalistas.

Haddad reforçou a necessidade de redução nas renúncias fiscais — que chegam a R$ 600 bilhões — como fundamental para o cumprimento das metas previstas. "Estamos querendo rever um quarto dessa renúncia para garantir a sustentabilidade fiscal do país", afirmou.

Após receber a versão final do arcabouço fiscal, Arthur Lira afirmou que "até 10 de maio" será possível aprovar o texto na Câmara. Para ser aprovado, um projeto de lei complementar precisa de, no mínimo, a maioria absoluta de votos favoráveis, ou seja, 257 votos dos 513 deputados da Casa. O relator da proposta deve ser escolhido nesta quarta-feira.

Desconfiança

Apesar de ser uma demanda do mercado para sinalizar o compromisso do novo governo com a responsabilidade fiscal, projeto gerou dúvidas entre especialistas. De acordo com analistas ouvidos pelo Correio, há risco de a nova âncora entrar para o rol de regras que não são cumpridas, a exemplo do teto de gastos, que vem sendo ampliado desde 2019.

Para eles, as exceções de itens como precatórios dos limites de gasto podem provocar "furos" no novo teto para as despesas. "É mais uma lei que não será cumprida, porque não é operacional e depende de aumento de impostos que dificilmente serão aprovados pelo Congresso", ressaltou o economista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Simão Davi Silber. Para ele, Haddad não vai conseguir apoio do Congresso para elevar a arrecadação em até R$ 150 bilhões para cumprir as regras do novo arcabouço e as metas fiscais a partir de 2024.

Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da Ryo Asset, considerou o novo arcabouço pouco crível. "Perdemos uma boa oportunidade de entregar o equivalente ao 'Plano Real Fiscal'", afirmou.

De acordo com um técnico da Esplanada dos Ministérios, o desenho do novo arcabouço nasce com a ideia de limite frouxo para as despesas. "O importante, num ajuste fiscal, é limitar o gasto, mas criaram 13 exceções, incluindo precatórios do novo teto de gastos. Numa primeira visão, me parece um teto todo furado", destacou o economista, que pediu anonimato.

Sergio Vale, economista-chefe da MB Associados, reconheceu que há sempre o risco de as exceções nas despesas acabarem gerando brechas para o aumento de gastos. "Algumas dessas exceções já estavam na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição, e o governo não quis mexer. Vamos ter que acompanhar para ver se, no ano que vem, o governo não estará gastando fora da regra por esses escapes", acrescentou. 

arcabouco fiscal
arcabouco fiscal (foto: Pacífico)

Três perguntas para: Monica De Bolle, economista e pesquisadora do Peterson Institute for International Economics

Qual a sua avaliação do novo arcabouço fiscal enviado ao Congresso?

Nunca enxerguei a necessidade de um novo arcabouço fiscal. O Brasil já tem um excesso de regras fiscais e o maior problema é a falta de um mecanismo de governança para elas serem cumpridas. E isso não temos. Sem esse mecanismo, o Brasil dá mais um passo na direção errada. O novo arcabouço cria uma complexidade em excesso, na realidade, para uma outra meta fiscal, além das existentes, que não é necessária. Tudo o que o governo precisa para reduzir a relação dívida-Produto Interno Bruto (PIB), a médio prazo, está dentro da Lei de Responsabilidade Fiscal. Bastaria cumpri-la.

E como seria esse mecanismo de governança?

A discussão econômica no Brasil é de baixa qualidade e não acompanha o debate internacional. Os agentes financeiros estão por fora do que se passa no resto do mundo. Não adianta achar que a Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, seria esse mecanismo, mas é um embrião. É preciso um conselho fiscal independente, como o da União Europeia, ou CBO (Escritório de Orçamento do Congresso), nos Estados Unidos. A IFI faz um bom trabalho, mas é pequena e não tem a envergadura política para funcionar como mecanismo de governança. Por isso, é preciso uma conscientização generalizada do problema fiscal a fundo. Nós não temos um mecanismo de governança. Então, a gente pode inventar a regra que quiser, pode fazer a regra mais bonita do mundo sem um mecanismo de governança. Esquece. A regra vai sempre ser alterada em algum momento. Pode ser uma regra porcaria, como foi o teto de gastos, ou pode ser uma regra mais bem feita.

E qual seria a saída?

Incluir um limite para os gastos na Constituição foi um erro ou ingenuidade. Nos últimos seis anos, a Constituição foi descaracterizada toda vez em que o teto foi alterado, em um prazo menor do que o rito tradicional de tramitação de uma emenda constitucional. Com isso, foi aberto o espaço para o orçamento secreto. O teto foi mal feito e não podia ficar na Constituição. O importante é que ele será substituído com esse novo arcabouço, mas sem um mecanismo de governança, a nova regra também não vai funcionar. Na verdade, para conseguir a sustentabilidade da relação dívida-PIB, o governo não precisava enviar um projeto de lei complementar ao Congresso. Bastava o presidente da República publicar um decreto. O regime de metas de inflação, por exemplo, é uma resolução do Banco Central com força de um decreto. Se o governo quisesse fazer uma coisa razoável para ter uma âncora fiscal, ele poderia estabelecer um horizonte para a dívida-PIB por decreto. 

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