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Por que há 6 tipos de dólar na Argentina?

A Argentina tem um problema recorrente de alta inflação há décadas, gerado em parte pela tendência dos governos de imprimir dinheiro para financiar altos gastos públicos

Na Argentina, as várias cotações de dólar sofreram um salto após os resultados inesperados das primárias no domingo (13/8) -  (crédito: Getty Images)
Na Argentina, as várias cotações de dólar sofreram um salto após os resultados inesperados das primárias no domingo (13/8) - (crédito: Getty Images)
BBC
Veronica Smink - Da BBC News Mundo na Argentina
postado em 15/08/2023 11:40 / atualizado em 15/08/2023 11:41

Em meio à incerteza gerada pelo inesperado sucesso do economista de direita radical Javier Milei nas eleições primárias, o Banco Central da Argentina (BCRA) anunciou uma desvalorização de 18% do peso, o que provocou uma alta de 22% na cotação do dólar "oficial".

Trata-se de mais um forte impacto para um país que já tem uma das maiores taxas de inflação do mundo, que ultrapassa 115% ao ano.

Com o anúncio do BCRA — que também elevou a taxa de juros para 118% — e a cotação oficial do dólar foi para 350 pesos no mercado "oficial".

O objetivo dessa abrupta desvalorização é deixar o câmbio praticado pelo governo um pouco mais próximo dos demais tipos de dólar que o país possui, principalmente do dólar blue ("azul", em inglês), que é a principal referência utilizada pelos argentinos.

Na segunda-feira, esse dólar de mercado — que já havia subido cerca de 20%, de 500 pesos para mais de 600 pesos nas duas semanas antes das primárias — também passou por outra alta abrupta, superior a 10%, chegando a mais de 680 pesos.

A maioria dos economistas atribui essa elevação à incerteza financeira causada pela surpreendente vantagem eleitoral de Milei, um candidato que se diz a favor do livre mercado — e que, se vencer a eleição marcada para 22 de outubro, prometeu dolarizar a economia e fechar o banco central.

Estreitar a distância entre o valor do dólar oficial e dos dólares financeiros é uma das exigências que o Fundo Monetário Internacional (FMI), principal credor do país, vem cobrando do governo argentino. O país deve cerca de US$ 44 bilhões ao FMI, que foram contratados ainda durante o governo de Mauricio Macri.

A medida buscaria estancar a sangria de dólares que tem levado as reservas do BCRA ao limite.

Mas por que a Argentina tem tantos tipos de dólar? Conheça os motivos e as diferenças entre eles a seguir.

Os 'cepos'

A Argentina tem um problema recorrente de alta inflação há décadas, gerado em parte pela tendência dos governos de imprimir dinheiro para financiar altos gastos públicos.

Isso leva — como acontece agora — à desvalorização do peso.

Por isso, os argentinos usam o dólar como referência de preços e como uma moeda de poupança.

A indústria nacional também é fortemente dependente de insumos importados.

Mas a crescente demanda por dólares em um país que não os produz criou repetidamente um problema conhecido tecnicamente como "restrição externa".

Em suma: os dólares não são suficientes, e isso cria uma crise.

Para tentar conter a saída de divisas e preservar as reservas do Banco Central, os vários governos que estiveram no poder nas últimas duas décadas — tanto kirchneristas quanto macristas — aplicaram restrições à compra de moedas estrangeiras, conhecidas localmente como "cepos".

Esses controles de capital geraram um fenômeno muito particular: a coexistência de toda uma série de preços diferentes para a moeda americana na Argentina. Em alguns casos, as cotações delas podem variar em mais de 100%.

1. Dólar poupança

É a cotação a qual o poupador argentino tem acesso em dólar oficial.

Embora o BCRA estabeleça um valor para o dólar, pessoas comuns não podem acessar a moeda norte-americana por esse preço.

Eles devem pagar uma sobretaxa de 75% e só podem comprar, no máximo, US$ 200 por mês — e isso se atenderem a uma série de requisitos que apenas uma minoria muito pequena da população pode cumprir.

É por isso que muitos poupadores argentinos recorrem ao mercado ilegal para comprar a moeda.

2. Dólar 'blue'

Como já mencionado anteriormente, é assim que se chama o dólar comprado fora dos meios oficiais.

Para a maioria dos argentinos, essa é a forma mais comum de acessar a moeda americana além dos limites estabelecidos pelo governo.

Os argentinos usam blue como principal referência para o dólar, já que a cotação dele segue a lógica de oferta e demanda.

Quando se compra ou se vende uma casa, um carro ou algo de grande valor, como um computador ou um celular, utiliza-se esta cotação.

Porém, por ser regido pelas leis do mercado, esse tipo de dólar também é muito mais volátil e pode disparar repentinamente, como já aconteceu várias vezes antes e depois dos dias de eleições.

Quando o blue sobe com grande velocidade, pode chegar a um preço até mais de 100% superior ao valor praticado no mercado oficial.

Esse fenômeno é conhecido como la brecha cambial e, quanto mais essa diferença cresce, maior fica a pressão para a desvalorização do peso.

3. Dólar cartão

Quem usa o cartão de crédito para pagar serviços em dólares (como assinaturas da Netflix e da Amazon) ou pequenos gastos no exterior também tem uma cotação própria, que é igual à do dólar poupança, com acréscimo de 75% de encargos.

Mas esse esquema só vale quando as despesas são inferiores a US$ 300.

4. Dólar turista ou 'Catar'

Se um argentino viaja para o exterior e gasta mais de US$ 300, a alíquota de imposto sobe para 100%.

Como essa política foi anunciada pouco antes da Copa do Mundo de 2022 — que a Argentina acabou vencendo —, ela foi apelidada de dólar Catar, em referência ao país-sede da competição.

5. Dólar bolsa

Quem não quer comprar dólares fora do sistema financeiro formal tem uma alternativa: o "mercado de pagamentos eletrônicos" (MEP, na sigla em espanhol), que é uma forma legal para obter moeda estrangeira.

Isso é feito por meio da compra e da venda de títulos financeiros e ações, o que exige a intermediação de uma corretora de valores.

Por isso, esse tipo é conhecido informalmente como "dólar bolsa".

A operação funciona assim: é preciso adquirir títulos cotados tanto em peso argentino quanto em dólar americano.

Eles são comprados em moeda local e vendidos no exterior.

Mas a moeda que entra na conta no final do processo está sujeita à regulamentação local.

6. Dólar CCL

O dólar "contado com liquidação" (CCL) é outra ferramenta financeira, mas esta permite trocar pesos por dólares no exterior.

Para muitas empresas e investidores, essa é a principal forma de adquirir moeda estrangeira e tirá-la do país legalmente.

Por isso, muitos analistas econômicos consideram o CCL e o dólar bolsa como os melhores termômetros para estimar o valor "real" da moeda americana no contexto argentino.

Para obter a chamada "contagem com liquidez" é preciso ter uma conta no exterior. Por isso, esse esquema não é utilizado pelos poupadores argentinos comuns.

O dólar CCL utiliza ações ou títulos listados na Argentina e também em outro mercado internacional (como em Wall Street, nos EUA).

Como o dólar bolsa, eles são comprados em pesos argentinos, mas depois esses ativos são transferidos para a conta no exterior e vendidos em troca de dólares americanos.

O cálculo de quantos dólares são comprados com determinada quantidade de pesos determina essa cotação.

Essas operações têm sido amplamente utilizadas para transferir dólares para outros países quando empresas e bancos são proibidos ou limitados de enviar dividendos para suas controladoras localizadas fora da Argentina.

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