Mineração

Empresas organizam mineração em torno de boas práticas socioambientais

Em Mato Grosso, pequenos e médios garimpeiros integram cadeia de negócio que respeita o meio ambiente e rastreia o metal, da origem ao comprador final. Os custos da operação são altos, mas os produtores elogiam a lisura do processo de extração

Área usada para escavação, depósito e beneficiamento das terras extraídas não passa de 10% do tamanho médio das fazendas da região -  (crédito:  Minervino Júnior/D.A Press)
Área usada para escavação, depósito e beneficiamento das terras extraídas não passa de 10% do tamanho médio das fazendas da região - (crédito: Minervino Júnior/D.A Press)
Vinicius Doria
postado em 27/08/2023 05:00

Cuiabá — Nas margens da estrada que liga Cuiabá a Poconé — porta de entrada do Pantanal Matogrossense —, grandes montes de terra fina indicam que há escavação no local. Ao longo dos 100km que separam as duas cidades, percorridos em uma hora e meia, o calor de mais de 40ºC fica do lado de fora do carro com ar-condicionado, um alívio breve para quem vai passar o dia em campo, conhecendo de perto uma atividade que há três séculos movimenta a economia de Mato Grosso: a extração de ouro.

A região é uma grande produtora do metal precioso, baseada no trabalho de pequenos e médios garimpeiros que, nos últimos anos, vêm se organizando em torno de uma cadeia de negócios exclusivamente voltada à produção e comercialização legal de ouro.

Em um país em que a comercialização fora da lei e o ouro "esquentado" intoxicam o mercado, um grupo de investidores se uniu a mineradores matogrossenses para tentar furar a bolha da ilegalidade e ofertar um produto certificado e totalmente rastreável em todas as etapas de extração, beneficiamento e comercialização.

O Correio percorreu os caminhos do ouro legal na Baixada Cuiabana e constatou que é possível, sim, organizar a mineração em torno de uma série de boas práticas socioambientais e, ainda, ir além do que exige a frágil e ultrapassada legislação que rege esse segmento da mineração brasileira.

Certificar todos os processos, fiscalizar as etapas de produção e comercialização, rastrear o caminho do ouro e dar transparência à atividade são as respostas do setor para competir com o ouro ilegal, extraído de forma clandestina e descontrolada de áreas de proteção ambiental, reservas indígenas.

Para os investidores, o principal motivo para apostar em boas práticas é o consumidor, cada vez mais exigente quanto à origem do produto que compra. A tragédia dos ianomâmis, em Roraima, amplificou a pressão internacional contra a exploração ilegal de areas protegidas no Brasil. Na maior terra indígena do país, mais de 40 mil garimpeiros atuaram praticamente sem repressão nos últimos anos, deixando sequelas graves nas comunidades e no meio ambiente.

Por precaução e segurança, os nomes dos donos das lavras não são citados. A atividade é exercida por pequenos e médios garimpeiros, a maioria mora na própria região de Poconé e vai, diariamente, às minas checar o andamento do trabalho e recolher a produção diária. Produção que cabe no bolso da calça e é vendida no mesmo dia em um dos postos de comercialização na cidade.

"Dá trabalho. O custo de produção é muito alto, chega a 90% do meu faturamento. Mas é um bom negócio, é dinheiro certo que está cada vez mais seguro, e tem mercado", disse o dono de uma das minas visitadas pela reportagem.

Depois de mostrar a pequena barra de ouro que acabara de sair da fundição, o garimpeiro guardou a peça brilhante no bolso. Da mina, ele seguiria no próprio carro para Poconé. Para chegar até os veios de ouro, é preciso cavar. Algumas minas mais antigas chegam a ter mais de 100 metros de profundidade.

A área usada para escavação, depósito e beneficiamento das toneladas de terra extraídas das lavras é relativamente pequena, não passa de 10% do tamanho médio das fazendas em que estão instaladas na região. O restante da propriedade é usado pelo dono para criação de gado, lavoura ou manutenção de mata nativa. Pela legislação, após esgotada a produção da mina, a área degradada deve ser integralmente recuperada.

À frente de todo esse esforço para montar uma cadeia de negócios exclusivamente dedicada ao ouro legal está uma distribuidora de títulos e valores mobiliários (DTVM), fundada em Cuiabá, que conseguiu montar uma rede de cerca de 40 pequenos e médios garimpeiros baseada na responsabilidade socioambiental, com capacidade de rastrear o metal desde a lavra até a entrega ao comprador final.

Em cinco anos de existência, a Fênix DTVM viu seu faturamento atingir R$ 4 bilhões em 2022, com a comercialização de 9 toneladas de ouro. Pelas regras do Banco Central, apenas sete distribuidoras de títulos podem comprar e vender ouro extraído de garimpo.

As mineradoras de escala industrial operam de forma verticalizada (e rigorosamente fiscalizada) em relação à própria produção. Mesmo assim, pelos volumes comercializados, a Fênix — que também verticalizou o processo a partir de sua rede de fornecedores — atingiu, no ano passado, o 9º lugar no ranking dos maiores produtores brasileiros, atrás apenas das oito grandes mineradoras do setor — Vale, MBR, Anglo American, CSN Mineração, Salobo Metais, Kinross, AngloGold Ashanti e Mineração Usiminas.

Para o CEO da DTVM cuiabana, Pedro Eugênio Procópio, são muitos os desafios para construir no país um mercado efetivo e funcional de ouro legal extraído de garimpo, mas essa é uma demanda global.

"O mundo já apresenta um grau de exigência muito maior do que se tinha anteriormente. Mercados de primeira linha, como o europeu — que tem na Suíça um grande importador —, e o norte-americano já têm essa cultura consolidada quanto à origem responsável, à exigência de rastreabilidade. Não querem problemas com o ouro que compram", explica.

Por extrair e beneficiar ouro de maneira comprovadamente responsável, pelo menos seis devem receber o selo de garantia que as credenciam a receber um bônus de US$ 1 para cada grama exportado à Suíça, um dos maiores compradores do mundo.

Por isso, Procópio acredita que há espaço no Brasil "para se criar um grande berço de mineração de ouro responsável de pequena e média escalas que convive bem, de forma sustentável, com a sociedade e o meio ambiente".

Passo a passo

Para entender como funciona a cadeia do ouro legal baseada em pequenos e médios mineradores, é preciso esquecer a imagem do garimpeiro bronco, de bateia na mão, lavando cascalho nos rios. O garimpo em Poconé e em outros municípios da região é feito em minas escavadas a céu aberto por maquinário pesado. Mesmo assim, é considerado de pequeno e médio portes.

O primeiro degrau da certificação passa pela identificação do garimpeiro e de sua mina, que precisa ter todas as licenças oficiais para que a extração possa ser feita. Apenas o ouro retirado da poligonal autorizada para lavra pode ser comercializado.

Algumas minas são exploradas há mais de 30 anos e permanecem produtivas. Em todas, a escavação é constante. Por dia, pode superar 4 mil toneladas de terra, que é depositada perto da planta de beneficiamento. Esse volume, no fim do processo, se reduzirá a poucas gramas do metal precioso.

Os empregados dessas minas — todos com carteira assinada — usam equipamentos de proteção individual e têm acesso a banheiros limpos, alojamentos com relativo conforto e até água potável gelada, um alívio para quem labuta sob o forte calor da região central do Brasil.

Na planta de beneficiamento, as instalações são modestas e há pouca utilização de mão de obra, quase todo o processo é feito por máquinas. A terra extraída da mina vai para um enorme moedor que transforma tudo em pó fino. Esse material passa, então, por processos de decantação, em que os elementos mais pesados — como o ouro — ficam depositados no fundo, em um tipo de lama com alta concentração do metal.

Em um ambiente em que a entrada de pessoas é restrita, essa massa vai para uma centrífuga, que faz a separação final do ouro com a utilização de mercúrio. O resultado é uma espécie de bola disforme, que é fundida e moldada em barras para comercialização.

Nesta fase de produção, tudo é conferido por auditores externos, para garantir que não há ouro extraído de outros locais, apenas da lavra certificada. Toda a água usada no processo é captada no fundo das próprias minas, no afloramento do lençol freático, e reutilizada em um sistema fechado em que não há impacto em mananciais nem descarte no meio ambiente. O mercúrio usado para aglutinar as partículas de ouro tem índice elevado de reciclagem — o reaproveitamento, feito por empresas especializadas, passa de 98%, índice semelhante ao do alumínio.

A barrinha de ouro que sai da fundição segue, então, para um dos três postos de comercialização do metal autorizados a operar pela Fênix em Poconé. A cada etapa, são emitidos selos de certificação e de rastreabilidade do ouro. A cada operação de compra e venda, liquidadas no mesmo dia, são emitidas notas fiscais eletrônicas que registram os volumes negociados e asseguram o recolhimento dos impostos pelo Fisco.

De Mato Grosso, o metal precioso é embarcado para São Paulo e, de lá, segue para o exterior. Atualmente, 100% da produção coordenada pela DTVM cuiabana são exportados. Canadá, Índia, Suíça e Reino Unido são os maiores compradores do metal brasileiro.

* Repórter viajou a convite da Fênix DTVM

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