A pandemia mudou a relação do brasiliense com a música, mas também fortaleceu a relação da música com Brasília. Chegando aos 61 anos, a cidade, que lançou nomes como Renato Russo e a Legião Urbana, Zélia Duncan e Cássia Eller, viu seus músicos saírem às quadras novamente. Se, naquela época, era um ato de rebeldia, hoje a empatia e o afeto são as matrizes desse movimento que toma as ruas da cidade.
“Fizemos um evento no Sudoeste e, mais tarde, vendo as marcações no Instagram, recebi uma mensagem no inbox de um rapaz de Uberlândia (MG). Ele contou que a mãe viu a nossa apresentação. Estávamos de costas para o prédio dela. Ele agradeceu. Disse que a família são só os dois, que ele estava sem poder vê-la, e ela estava triste, sozinha, e a música trouxe um acalento. Ela conseguiu descansar, dormir.” Quem conta a história é o músico Tico de Moraes, um dos idealizadores do Projeto Varanda Musical itinerante.
O vocalista e guitarrista toca jazz e MPB com o saxofonista e tecladista Alexander Raichenok e o baterista Misael Barros. Antes da pandemia, o trio tocava em um projeto homônimo, que reunia música e gastronomia em apresentações intimistas, mas suspendeu os trabalhos em março de 2020. Em busca de um caminho para seguirem tocando, vislumbraram a possibilidade de levar um respiro para o brasiliense. “As pessoas estão nervosas, estressadas, com medo; e esse tipo de ação traz um conforto. Foram vários relatos, pessoas agradecendo muito, pois traz realmente um conforto”, avalia Tico. O grupo também transmite as apresentações pelas redes sociais.
Músico profissional há 17 anos, o guitarrista lembra que começou a aprender violão também debaixo do bloco, com amigos. E, com o passar do tempo, o ambiente aberto, amplo, propício para a circulação, onde a turma se encontrava, agora, volta a ser cenário para que o músico e companheiros empunhem seus instrumentos. “Boa parte da minha formação musical passa por essa história que acontece debaixo do bloco. E agora a gente volta para esse espaço arquitetônico, muito comum em Brasília. O Projeto Varanda Musical sempre acontece com a concordância das pessoas. Morador, síndico ou prefeitura entra em contato, e a gente pede para que haja a concordância dos condôminos, para ser agregador”, conta.
A rua que chama
O bombeiro reformado, produtor musical e saxofonista João Filho, 50, também toca sax nas quadras de Brasília, do Cruzeiro e do Sudoeste. Às vezes, se esconde entre as árvores e deixa a música levar uma energia boa a quem está quarentenado. “Eu quero entregar um momento de paz. Aquele momento de segurar a onda, que isso tudo vai passar, vai dar certo. Aí, toco Imagine, do John Lennon, What a wonderful world, clássico interpretado por Louis Armstrong, músicas da bossa nova, Evidências, sucesso de Chitãozinho e Xororó, e artistas como Frank Sinatra, (John) Coltrane... Todo mundo curte. As pessoas veem alguém que vai para rua, levar um sopro de esperança, e isso também me faz bem. É o que mais importa”, diz.
Assim como Tico de Moraes, João Filho vê no que faz um pouco da história musical de Brasília. Inquieto, ele lembra da juventude, de estudar na Escola de Música de Brasília (EMB). Saía de Samambaia, descia na Rodoviária, cantarolando Faroeste caboclo na cabeça, e imaginava morar no Plano, perto da Universidade de Brasília (UnB) e do Teatro Nacional. “Não concluí os estudos na Escola de Música. Um dia esqueci um caderno para um teste, e o professor me mandou tocar na rua. Com o tempo eu digeri essa mensagem”, lembra.
Empurrado pelo destino no caminho que mais amava, depois de reformado como militar dos Bombeiros por causa de uma hérnia de disco, decidiu pegar o instrumento e tocar na rua. Quando a pandemia começou, o que era circunstância virou missão. “Hoje, eu pego a bike, vou para a Asa Sul, paro, aproveito a acústica dos prédios, dos pilotis, e toco. É quase um anfiteatro. O público observa nas janelas. Tem gente que desce, leva cadeirinha. Tudo é artístico, propício. As pessoas querem agradecer de alguma forma. As que não podem descer colocam o dinheiro no saquinho e jogam. Só o tempo dirá que história eu estou fazendo. Tenho a noção de que estou escrevendo uma história, porque isso está acontecendo na minha cabeça. É minha história”, afirma.
E até mesmo paradas de ônibus viraram cenário para música, segundo conta Anthony Carbert. Morador de Valparaíso, ele toca música religiosa em paradas de ônibus da capital e conta que o brasiliense está mais emotivo. Ele começou a se apresentar na rua há três anos, parou no começo da pandemia, mas decidiu retomar a atividade, que aprendeu com o pai. “Tem muita gente que necessita de uma música. Tem gente que chora, que se emociona. Antes, era muito raro de acontecer. Mas agora é frequente. Estamos vivendo um tempo em que precisamos nos ajudar. Isso me traz o pensamento de que eu devo continuar com esse projeto”, opina.
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