O Japão aprovou a primeira vacina para uso contra a covid-19 no dia 14 de fevereiro deste ano, dois meses depois de países como Estados Unidos e Reino Unido.
Após o início tardio da campanha, a imunização em massa não avançou como planejado: poucos dias antes do início da Olimpíada de Tóquio, apenas 35% dos japoneses haviam recebido pelo menos a primeira dose. O percentual é menor que o do Brasil, onde a parcela de imunizados com uma dose ou imunização completa chega a 45%, conforme os dados da plataforma Our World in Data.
As autoridades japonesas também não conseguiram evitar um aumento de casos de covid-19 e a disseminação na Vila Olímpica: nesta sexta (23/07), passavam de 100 os diagnósticos entre atletas, membros de delegações e jornalistas.
O cenário é o oposto da imagem do Japão eficiente que o mundo se acostumou a ver retratado nas últimas décadas. Inclusive nos momentos de crise: a reação ao terremoto e tsunami na região de Fukushima em 2011, para citar um episódio mais recente, foi notícia no mundo. Na época, o país chegou a reconstruir em apenas seis dias uma rodovia na cidade de Naka partida ao meio pelo desastre.
O que deu errado?
O combate à pandemia no país vem sofrendo críticas desde o início. Em agosto de 2020, um artigo publicado no periódico científico British Medical Journal (BMJ) apontou problemas que iam desde uma capacidade reduzida de testagem, que acabou elevando o número de casos não diagnosticados e, por consequência, as infecções, a falhas na comunicação da importância do distanciamento social e da necessidade de ficar em casa para proteger o sistema de saúde.
O texto, assinado pelos pesquisadores Kazuki Shimizu e Elias Massalo, do departamento de Política de Saúde da London School of Economics and Political Science, e Haruka Sakamoto, da Universidade de Tóquio, fala ainda de uma "tensão entre a política e ciência".
O comitê de especialistas montado no início do surto, exemplificam os estudiosos, não chegou a ter pluralidade e autonomia para que tivesse a importância que deveria no processo decisório. Também teria faltado ao governo maior transparência — a própria decisão de adiar os Jogos Olímpicos, segundo o artigo, foi tomada de forma abrupta e sem que fossem detalhadas suas razões.
Para Craig Mark, professor de relações internacionais da Universidade de Kyoritsu, em Tóquio, uma das explicações para a postura errante do governo foi a tentativa de preservar a economia.
"O governo não queria se colocar na posição de impor medidas mais severas. O argumento usado foi de que a Constituição do Japão não dá ao Executivo o poder de implementar lockdowns, mas isso poderia ter sido alterado por meio de lei com aprovação do Parlamento. O governo escolheu não seguir esse caminho", afirma.
Ainda assim, o país ficou bem longe dos recordes de casos e mortes observados pelo mundo. Entre os 126 milhões de habitantes, até o momento foram registradas pouco mais de 15 mil óbitos pela doença. Na comparação pelo critério de mortes por milhão de habitantes, o Japão segue bem atrás de países como Brasil, Reino Unido, Estados Unidos, Canadá e Alemanha.
Uma das explicações é a autodisciplina do povo japonês, que cumpriu em boa medida as recomendações para uso de máscara e para que fossem evitadas aglomerações.
"O governo tem se apoiado no senso de cooperação dos japoneses, mas isso tem um limite, especialmente agora, com a disseminação da variante Delta", avalia Mark.
"E há um desgaste, por exemplo, entre os jovens, que querem sair de casa, encontrar os amigos. Já vi bares vendendo bebidas alcoólicas após o horário permitido pelas medidas de restrição", ele conta.
Diante do aumento de casos às vésperas dos Jogos, o Japão declarou estado de emergência pela quarta vez, com previsão de duração até o dia 22 de agosto. Em Tóquio, a presença de público nos locais das competições foi proibida.
Imunização lenta
O país também se preparou mal para o início da vacinação, que começou atrasada na comparação com outros países desenvolvidos.
Um artigo publicado há cerca de um mês no periódico científico The Lancet elaborado por pesquisadores japoneses destacou três fatores para a lentidão.
Primeiro, uma demora por parte do órgão regulador para aprovar a primeira vacina (no caso, a da Pfizer), entre outros motivos, por causa da exigência da realização de testes clínicos dentro do país — um pré-requisito que, na opinião de alguns especialistas, poderia ter sido flexibilizado. Atualmente, apenas vacinas da Pfizer e Moderna estão disponíveis.
Depois, houve atraso na importação das doses, neste caso por conta do alto nível de demanda global e da dificuldade da fabricante de fornecer o imunizante.
Finalmente, o programa de imunização por meses não conseguiu alcançar capilaridade suficiente para garantir a vacinação em massa. Apenas médicos e enfermeiros estão autorizados a aplicar o imunizante, explicam os autores. Assim, o governo teve dificuldade de contratar pessoal suficiente para administrar as doses.
Máquinas de fax e carimbos pessoais
O atraso no cronograma de vacinação, causado, em muitos casos, por questões que o governo poderia ter se organizado para solucionar antecipadamente, trouxe à tona um lado pouco conhecido do país entre os estrangeiros — a burocracia estatal.
"De forma geral, as coisas no Japão funcionam de maneira muito eficiente. Acho que um exemplo famoso é o dos trens, que são extremamente pontuais. As cidades são muito limpas, arrumadas… Mas há alguns fatores, particularmente a burocracia, que atrapalham os trabalhos às vezes", diz Mark, que é australiano e mora no Japão há quase 10 anos.
Muitos processos que poderiam ter sido digitalizados ainda são feitos de forma analógica, no papel. Não por acaso, o fax segue amplamente utilizado nas repartições públicas, assim como nos escritórios e mesmo nos domicílios.
Outro símbolo do lado analógico do Japão são os carimbos pessoais, conhecidos como hanko, e que ainda são pré-requisito para liberação de alguns documentos oficiais.
"É bonito quando você olha… mas manter a necessidade de carimbar um monte de papel acaba criando uma burocracia desnecessária", diz o professor. "Acho que esse é um exemplo de como antigas tradições e a burocracia estatal têm contribuído para atrasar as coisas", completa.
Há anos o governo tenta digitalizar o setor público. Desta vez, o primeiro-ministro Yoshihide Suga chegou a nomear um ministro incumbido da tarefa: Hirai Takuya, que tem oficialmente o título de "ministro da transformação digital".
Médicos pediram cancelamento dos Jogos
Suga assumiu como premiê em setembro 2020, após a renúncia de Shinzo Abe, seu correligionário do Partido Liberal Democrático, que também vinha recebendo uma série de críticas pela condução do combate à pandemia.
As acusações de erros e falhas no enfrentamento da crise sanitária têm custado caro ao governo, que atingiu mínima recorde de aprovação antes do início dos jogos, de cerca de 30%.
Em maio, uma importante associação de médicos que Tóquio, que reúne 6 mil profissionais, enviou uma carta aberta a Suga pedindo que a Olimpíada fosse cancelada.
"As unidades de saúde que tratam pacientes com covid-19 estão no limite e praticamente não têm como aumentar a capacidade de atendimento", dizia o comunicado.
O temor era de que, com a chegada de atletas e delegações de todo o mundo, haveria um salto no número de infecções, sobrecarregando o sistema de saúde em uma época do ano em que tradicionalmente há maior procura, já que o intenso do verão japonês leva muita gente às unidades de saúde.
E, de fato, a cidade de Tóquio assistiu a um aumento expressivo no número de casos na última semana, tendo passado de 1,8 mil na quarta-feira (21/07), o maior valor registrado em um único dia desde janeiro.
'Tristeza e decepção'
Além da pandemia, uma série de controvérsias também marcou a preparação para os jogos, da acusação de plágio do logo apresentado em 2015 (que levou à sua substituição em 2016) à demissão do diretor da cerimônia de abertura um dia antes do evento por causa de uma piada sobre o Holocausto feita por ele em uma apresentação em 1998.
Cinco meses antes, comentários sexistas derrubaram o chefe do comitê olímpico do cargo. Ao responder a uma pergunta sobre o aumento de mulheres entre os membros do comitê, Yoshiro Mori disse que elas "falam demais". Ele inicialmente se recusou a renunciar, mas o fez após pressão da opinião pública, de patrocinadores e do Comitê Olímpico Internacional (COI).
Em meio às polêmicas e diante do que se desenha como a quinta onda da pandemia de covid-19, Tóquio vive uma atmosfera que mistura, de um lado, certa indiferença e, de outro, tristeza e decepção, diz o professor Mark.
"Muita gente aqui acha que a realização dos Jogos é um risco desnecessário. Eu tive a sorte de estar na Olimpíada de Sydney em 2000 e o clima era completamente diferente — alegre, de celebração. Vamos ver se as coisas mudam aqui nas próximas semanas."
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