"Lembro, garoto, que seus antepassados morreram. Milhões de desaparecidos para o orgulho de um país. Nunca mencionei as trincheiras da Bélgica, quando pararam de lutar e estavam sós." A letra de All togheter now (Todos juntos agora) — de Peter Hooton e Steve Grimes, da banda britânica The Farm — é uma das recordações da Trégua de Natal, o dia em que o futebol driblou a Primeira Guerra Mundial, há 107 anos. "Um espírito mais poderoso do que a batalha estava trabalhando naquela noite. Dezembro gelado de 1914. Países fronteiriços se uniram e decidiram não lutar", segue a música.
Era o primeiro ano de um dos conflitos mais sangrentos da Europa, e os principais campeonatos nacionais do continente estavam paralisados. Itália, Alemanha, França, Bélgica, Croácia, Tchecoslováquia, Dinamarca e Romênia interromperam seus torneios à espera de notícias de outros artilheiros — os das Forças Armadas. Na frente de batalha, porém, dois grupos de combatentes ousaram celebrar o Natal.
Inimigos na batalha, militares da Alemanha e da Inglaterra decidiram ignorar as ordens de combate e se presentear com uma noite de paz na trincheira de Ypres, na Bélgica. Na véspera daquele 25 de dezembro, soldados germânicos teriam surpreendido os aliados ingleses e franceses com enfeites e canções natalinas. A acústica no front permitiu que os dois exércitos se ouvissem. Houve trocas de gritos de "Feliz Natal", até que um mensageiro alemão apresentou uma proposta aparentemente absurda: de os dois lados festejarem juntos a simbólica data de nascimento do menino Jesus.
Em um dia histórico, soldados programados para matar guardaram as armas. Mais do que isso: confiaram mutuamente no inimigo e desobedeceram às vozes de comando. Houve comida, bebida, canções natalinas, orações e o enterro de companheiros mortos nos cinco primeiros meses da guerra, que duraria mais três anos. Ao fim do conflito, em novembro de 1918, a carnificina havia matado mais de nove milhões de pessoas.
Naquele Natal de 1914, porém, ainda faltava uma surpresa para os combatentes em Yrpes. Em meio à confraternização entre inimigos, surgiu uma amiga dos dois povos: a bola. Futuros protagonistas de uma final de Copa do Mundo, em 1966, Alemanha e Inglaterra decidiram disputar um amistoso, um jogo da paz na terra de ninguém. Mesmo reforçada por aliados franceses, a infantaria britânica perdeu a emblemática partida por 3 x 2 para os germânicos.
O último protagonista da Trégua de Natal morreu em 2005, ano em que o cineasta francês Christian Carion lançou o filme Joyeux Noël (Feliz Natal), com o ator Daniel Brühl, sobre a data histórica. Não há certeza de quanto tempo durou a paz. Alguns livros bancam que a batalha foi retomada em 26 de dezembro de 1914. Outros dão conta de que o intervalo perdurou até janeiro de 1915.
Além do grupo The Farm, a série britânica de tevê The Black Adder (1989) e a música Pipes of Peace (Cachimbo da paz), de Paul McCartney, recordam o dia em que o futebol driblou a guerra. Em 18 de dezembro de 2014, a União Europeia de Futebol (Uefa) levantou um monumento em comemoração ao centenário da noite de paz.
Vitória da Tríplice Entente
A Primeira Guerra Mundial ocorreu entre 28 de julho de 1914 e 11 de novembro de 1918, quando foi assinado o Tratado de Versalhes. Centrado na Europa, o conflito opôs a Tríplice Entente, formada por Reino Unido, França e Império Russo; e a Tríplice Aliança, que reunia os impérios da Alemanha e da Áustria-Hungria e acabou derrotada. Mais tarde, Itália, Japão, Estados Unidos, Bulgária e Império Otomano entraram no conflito. Mais de 70 milhões de soldados participaram da carnificina, que teve como gatilhos políticas imperialistas e o assassinato, em Sarajevo, do arquiduque Francisco Fernando, herdeiro do trono austríaco, pelo nacionalista iugoslavo Gavrilo Princip.
"Essas coisas não deveriam acontecer em tempos de guerra. Porventura os alemães perderam totalmente o sentido de honra?"
Adolf Hitler, cabo do 16º Regimento da Baviera, ao saber do amistoso em plena guerra
SAIBA MAIS
Sem moral
Ao saber da Trégua de Natal, o general Sir Horace SmithDorrien, comandante do 2º Corpo Britânico, proibiu imediata e terminantemente qualquer contato com o inimigo, sob a ameaça de prisão e fuzilamento. Do outro lado, um jovem cabo do 16º Regimento da Baviera, chamado Adolf Hitler, começava a colocar as asas de fora: "Essas coisas não deveriam acontecer em tempos de guerra. Porventura os alemães perderam totalmente o sentido de honra?", indignou-se o futuro Führer.
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