Decreto

Nova política de educação especial propõe separação de alunos

Crianças passarão a estudar em escolas e salas especiais. Especialistas e professores debatem que o decreto representa um retrocesso para a inclusão

Isabela Oliveira*
postado em 02/10/2020 20:51 / atualizado em 02/10/2020 21:26
Ministro da Educação, Milton Ribeiro, durante discurso na cerimônia de apresentação e assinatura do decreto -  (crédito: Isac Nóbrega/PR)
Ministro da Educação, Milton Ribeiro, durante discurso na cerimônia de apresentação e assinatura do decreto - (crédito: Isac Nóbrega/PR)

A inclusão de alunos portadores de deficiência é um desafio que escolas, pais e as próprias crianças enfrentam diariamente. É necessário ter um espaço adequado, profissionais capacitados, além do pensamento de que esses estudantes têm direito à educação como qualquer outro. Após anos de luta para garantia da inclusão, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto, publicado nesta quinta-feira (1º/10), tornando pública a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), que incentiva a segregação de estudantes com deficiência. Especialistas que convivem com a realidade refletem que a nova medida é um passo atrás nas conquistas que pautam a inclusão.

O objetivo da PNEE é fornecer mais flexibilidade aos sistemas de ensino, na oferta de alternativas como: classes e escolas comuns inclusivas, classes e escolas especiais, classes e escolas bilíngues de surdos, segundo as demandas específicas dos estudantes. Ou seja, fica a critério dos pais a escolha de qual instituição matricular os filhos. A política também pretende aumentar o número de educandos que, por não se beneficiarem das escolas comuns, evadiram em anos anteriores.

Professor da UnB Gerson Mól trabalha há 15 anos com temáticas da educação inclusiva
Professor da UnB Gerson Mól trabalha há 15 anos com temáticas da educação inclusiva (foto: Arquivo Pessoal)

Para o professor do departamento de química da Universidade de Brasília (UnB) Gerson Mól, 56 anos, o decreto fere a Constituição Federal no que se refere à garantia da inclusão. “Ele tira a obrigação da escola ser inclusiva, colocando a família para escolher onde quer que o filho estude e isso não é inclusão”, alerta o professor que trabalha há 15 anos com pesquisas de pós-graduação sobre educação inclusiva. Apesar de ser uma escolha familiar, não é uma decisão da instituição de ensino, pois é proibido negar matrícula para aluno PcD.

Luiza Corrêa é coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes e trabalha diretamente com ações para políticas públicas de inclusão
Luiza Corrêa é coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes e trabalha diretamente com ações para políticas públicas de inclusão (foto: Instituto Rodrigo Mendes/Divulgação)

A especialista Luiza Corrêa, 34, do Instituto Rodrigo Mendes também observa a inconstitucionalidade do decreto, além do fato de que a medida representa um atraso de 30 anos na luta da educação inclusiva. Ela acredita que a interação entre crianças com deficiência com as demais auxilia no processo de aprendizagem. “Já está comprovada em diversas pesquisas que a qualidade da educação no ambiente da inclusão é melhor”, ressalta a coordenadora de advocacy do instituto.

Corrêa é responsável por produzir dados, informações e conhecimento que apoiem o avanço da educação inclusiva no país e garantir que essas informações sirvam para uma melhoria nas políticas públicas relacionadas à educação inclusiva. “Temos 90% de alunos com deficiência incluídos na escola regular, e o decreto vem na contra mão”, acrescenta a especialista. Para Luiza, as condições de ensino educacionais são melhores no contexto de interação entre colegas: "Uma das missões da escola é preparar os estudantes para viver em sociedade".


Conviver com a diferença

A importância da convivência entre crianças portadoras e as outras que não têm nenhuma deficiência se dá na possibilidade de aprender com as diferenças e se preparar para a vida em sociedade. O professor Gerson Mól diz que as pessoas só são o que são pelo convívio social. “A gente vai se formando nessa convivência diária e a escola tem um papel fundamental para isso”, reflete o doutor em educação.

O professor da UFES Douglas Ferrari é deficiente visual e fica decepcionado em ver uma luta que ele travou quando estava na educação básica ter um retrocesso
O professor da UFES Douglas Ferrari é deficiente visual e fica decepcionado em ver uma luta que ele travou quando estava na educação básica ter um retrocesso (foto: Arquivo Pessoal)

Para o professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo Douglas Ferrari, integrar é importante, mas além disso é preciso mediar a convivência entre professor, colegas e escola. “As mediações sociais são muito importantes. Na minha vida é o que me trouxe até aqui. Ter referências na família, ajuda de colegas e na universidade”, conta o doutor em educação que é deficiente visual.

Além disso, ele assegura a necessidade da mediação para gerar consequências positivas para a sociedade. “Esse contato com o outro ‘diferente’ é importante para ele e para aquela pessoa sem deficiência. Futuramente, nós teremos melhores médicos, melhores biológicos, melhores cientistas e melhores professores, porque tiveram contato com pessoa com deficiência”, reforça o professor da UFES.

Para Gerson Mól, o decreto representa um passo atrás na luta dos deficientes, porque não se afasta as crianças umas das outras, mas sim cria-se condições para inclusão. “Ele (o aluno PcD) pode até estar em um espaço que não favoreça, mas não se pode retirá-lo. A gente precisa ir lá e reajustar esse espaço para a efetiva inclusão desse aluno”, conclui.


O que poderia ser feito

As principais ações que os especialistas comentam para melhorar a questão da educação inclusiva é a capacitação de professores e a implementação de infraestrutura mais acessível nas escolas. Outros pontos são a elaboração de diretrizes pedagógicas para direcionar os professores, que precisam de orientação.

A proposta da PNEE é investir em instituições públicas e entidades como Apaes que quiserem adotar a política. Contudo, para os especialistas, o recurso precisa ir para as escolas regulares, pois muitas não têm estrutura para proporcionar a inclusão.“O que o governo precisava fazer é que ele investisse nos processos e não que desse um passo atrás”, reitera o professor da UnB. “Todos têm o direito de viver de forma plural.”

O professor da UFES e deficiente visual Douglas Ferrari informa que entidades desfavoráveis ao decreto se mobilizam para combater e revogar a medida. A Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid) publicou nota de repúdio, com os argumentos de que a PNEE fere a Constituição e os direitos dos deficientes, como também representa um recuo às conquistas na educação inclusiva.

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