Eu, Estudante

Decreto

Nova política de educação especial propõe separação de alunos

Crianças passarão a estudar em escolas e salas especiais. Especialistas e professores debatem que o decreto representa um retrocesso para a inclusão

A inclusão de alunos portadores de deficiência é um desafio que escolas, pais e as próprias crianças enfrentam diariamente. É necessário ter um espaço adequado, profissionais capacitados, além do pensamento de que esses estudantes têm direito à educação como qualquer outro. Após anos de luta para garantia da inclusão, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto, publicado nesta quinta-feira (1º/10), tornando pública a Política Nacional de Educação Especial (PNEE), que incentiva a segregação de estudantes com deficiência. Especialistas que convivem com a realidade refletem que a nova medida é um passo atrás nas conquistas que pautam a inclusão.

O objetivo da PNEE é fornecer mais flexibilidade aos sistemas de ensino, na oferta de alternativas como: classes e escolas comuns inclusivas, classes e escolas especiais, classes e escolas bilíngues de surdos, segundo as demandas específicas dos estudantes. Ou seja, fica a critério dos pais a escolha de qual instituição matricular os filhos. A política também pretende aumentar o número de educandos que, por não se beneficiarem das escolas comuns, evadiram em anos anteriores.

Arquivo Pessoal - Professor da UnB Gerson Mól trabalha há 15 anos com temáticas da educação inclusiva

Para o professor do departamento de química da Universidade de Brasília (UnB) Gerson Mól, 56 anos, o decreto fere a Constituição Federal no que se refere à garantia da inclusão. “Ele tira a obrigação da escola ser inclusiva, colocando a família para escolher onde quer que o filho estude e isso não é inclusão”, alerta o professor que trabalha há 15 anos com pesquisas de pós-graduação sobre educação inclusiva. Apesar de ser uma escolha familiar, não é uma decisão da instituição de ensino, pois é proibido negar matrícula para aluno PcD.

Instituto Rodrigo Mendes/Divulgação - Luiza Corrêa é coordenadora de advocacy do Instituto Rodrigo Mendes e trabalha diretamente com ações para políticas públicas de inclusão

A especialista Luiza Corrêa, 34, do Instituto Rodrigo Mendes também observa a inconstitucionalidade do decreto, além do fato de que a medida representa um atraso de 30 anos na luta da educação inclusiva. Ela acredita que a interação entre crianças com deficiência com as demais auxilia no processo de aprendizagem. “Já está comprovada em diversas pesquisas que a qualidade da educação no ambiente da inclusão é melhor”, ressalta a coordenadora de advocacy do instituto.

Corrêa é responsável por produzir dados, informações e conhecimento que apoiem o avanço da educação inclusiva no país e garantir que essas informações sirvam para uma melhoria nas políticas públicas relacionadas à educação inclusiva. “Temos 90% de alunos com deficiência incluídos na escola regular, e o decreto vem na contra mão”, acrescenta a especialista. Para Luiza, as condições de ensino educacionais são melhores no contexto de interação entre colegas: "Uma das missões da escola é preparar os estudantes para viver em sociedade".


Conviver com a diferença

A importância da convivência entre crianças portadoras e as outras que não têm nenhuma deficiência se dá na possibilidade de aprender com as diferenças e se preparar para a vida em sociedade. O professor Gerson Mól diz que as pessoas só são o que são pelo convívio social. “A gente vai se formando nessa convivência diária e a escola tem um papel fundamental para isso”, reflete o doutor em educação.

Arquivo Pessoal - O professor da UFES Douglas Ferrari é deficiente visual e fica decepcionado em ver uma luta que ele travou quando estava na educação básica ter um retrocesso

Para o professor do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo Douglas Ferrari, integrar é importante, mas além disso é preciso mediar a convivência entre professor, colegas e escola. “As mediações sociais são muito importantes. Na minha vida é o que me trouxe até aqui. Ter referências na família, ajuda de colegas e na universidade”, conta o doutor em educação que é deficiente visual.

Além disso, ele assegura a necessidade da mediação para gerar consequências positivas para a sociedade. “Esse contato com o outro ‘diferente’ é importante para ele e para aquela pessoa sem deficiência. Futuramente, nós teremos melhores médicos, melhores biológicos, melhores cientistas e melhores professores, porque tiveram contato com pessoa com deficiência”, reforça o professor da UFES.

Para Gerson Mól, o decreto representa um passo atrás na luta dos deficientes, porque não se afasta as crianças umas das outras, mas sim cria-se condições para inclusão. “Ele (o aluno PcD) pode até estar em um espaço que não favoreça, mas não se pode retirá-lo. A gente precisa ir lá e reajustar esse espaço para a efetiva inclusão desse aluno”, conclui.


O que poderia ser feito

As principais ações que os especialistas comentam para melhorar a questão da educação inclusiva é a capacitação de professores e a implementação de infraestrutura mais acessível nas escolas. Outros pontos são a elaboração de diretrizes pedagógicas para direcionar os professores, que precisam de orientação.

A proposta da PNEE é investir em instituições públicas e entidades como Apaes que quiserem adotar a política. Contudo, para os especialistas, o recurso precisa ir para as escolas regulares, pois muitas não têm estrutura para proporcionar a inclusão.“O que o governo precisava fazer é que ele investisse nos processos e não que desse um passo atrás”, reitera o professor da UnB. “Todos têm o direito de viver de forma plural.”

O professor da UFES e deficiente visual Douglas Ferrari informa que entidades desfavoráveis ao decreto se mobilizam para combater e revogar a medida. A Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid) publicou nota de repúdio, com os argumentos de que a PNEE fere a Constituição e os direitos dos deficientes, como também representa um recuo às conquistas na educação inclusiva.