Os últimos dois anos de atuação do Ministério da Educação (MEC), permeado por crises provocadas pelas gestões polêmicas e trocas de ministros, podem ter provocado perdas no cenário educacional brasileiro.
Esse é o diagnóstico de especialistas, que acreditam também que conquistas de gestões anteriores foram perdidas e que o cenário piorou com o início da pandemia da covid-19.
Para Erasto Fortes, professor da área de políticas educacionais e gestão da educação da Universidade de Brasília (UnB), a condução de políticas educacionais é uma das maiores perdas da gestão do MEC sob o governo Bolsonaro.
O docente chama a atenção para os servidores de carreira da pasta. “O ministério tem um conjunto de profissionais de altíssima qualidade, que estão ali para servir o Estado e não governo A, B ou C”, diz. Então, haveria um potencial para fazer muito mais e aproveitar melhor essa expertise.
"O ministério precisa fornecer mais apoio técnico para a execução de políticas educacionais mais assertivas, o que ele não faz", diz. Ele avalia que o MEC não deu continuidade a "conquistas de gestões passadas".
O professor deu como exemplo de inação do MEC o próprio Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação). Sem uma ação forte do Congresso Nacional como a que ocorreu, o país não teria mais o fundo, avalia Erasto.
Gestão aberta à iniciativa particular trouxe esperanças que não se concretizaram
Francisco Borges, consultor de políticas educacionais da Fundação de Apoio à Tecnologia (FAT), tratava a expectativa de um governo "aberto à iniciativa particular" como positiva, o que poderia permitir o surgimento de novas oportunidades de educação. No entanto, a esperança não se concretizou.
Borges diz que o ministério “parece não estar na vida real” tanto por causa das ações da pasta quanto pela falta delas em áreas chave nos últimos dois anos. "Durante o tempo de Abraham Weintraub, por exemplo, o ministério não fez nada, não desenvolveu nada", critica.
O acadêmico avalia que a educação superior do país sofrerá sem a devida atenção da pasta às faculdades particulares, que “estão sem receber visitas e autorização do MEC para a criação de novos cursos de graduação”. Ele alerta que isso pode causar demissões em massa nas instituições particulares, que precisam se atualizar.
Parecer positivo com uma visão nacionalista da educação
Já Jorge Geovani, especialista em educação e professor do Colégio Cesas, avalia positivamente a condução do MEC nos últimos dois anos. Como único ponto negativo dos ministros sob Bolsonaro no MEC, Giovani cita o trabalho com a educação de jovens e adultos (EJA), mas pondera que “nenhum governo trabalhou bem a EJA”.
O professor cita a educação inclusiva como um destaque positivo. “O MEC trabalha desde o ano passado com atenção ao ensino especial”, afirma. Em 2020, Milton Ribeiro lançou, com a participação da primeira-dama do Brasil, Michelle Bolsonaro, a Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE).
A PNEE estabelece a participação de equipe multidisciplinar no processo de decisão da família ou do educando quanto à alternativa educacional mais adequada, se em escolas regulares ou especializadas. Embora o decreto tenha sido assinado por Bolsonaro em setembro de 2020, a PNEE foi criada no governo de Michel Temer.
Confira um balanço dos principais fatos ocorridos nos últimos dois anos do MEC
- Bolsonaro inicia governo com ameaças ao Enem
Quando foi eleito, ainda em 2018, Jair Bolsonaro afirmou que mudaria o estilo da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Na época, ele disse que tomaria conhecimento do conteúdo da prova antes da aplicação do exame. "Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes", prometeu.
Este ano, após o exame, Bolsonaro fez nova investida contra a prova quando comentou uma questão que comparava os salários de Neymar e Marta. De acordo com o presidente, a questão foi “ridícula” e refletia outras gestões do MEC.
Apesar da polêmica, o presidente não cumpriu a promessa de alterar o perfil do teste, de acordo com Erasto Fortes e Francisco Borges.
“Bolsonaro se propunha a fazer uma intervenção no banco de questões, de maneira a não admitir aquelas que fossem consideradas por ele e sua equipe como ideológicas. Essa interferência em questões de prova, para quem trabalha com banca de concurso, é um escândalo”, diz Fortes. “Não houve sequer alteração na banca de questões”, aponta Borges.
O professor Jorge Geovani, entretanto, opina que, mesmo com a mesma banca, a prova está diferente. “O Enem não mudou, mas tem hoje um significado um pouco diferente. Antes tinha um viés muito ideológico de esquerda, hoje não tem tanto isso”, acredita.
Vélez: três meses de "ridicularização da educação"
O primeiro ministro a assumir o MEC foi Ricardo Vélez, que ficou no cargo por três meses até abril de 2019. Abraham Weintraub foi o segundo comandante da pasta e ficou por 14 meses na função.
Para Erasto Fortes, o período de Ricardo Vélez no cargo representou “uma ridicularização da educação”. Vélez chegou a afirmar que tinha a intenção de mudar os livros didáticos para revisar a maneira como tratam a ditadura militar e o golpe militar de 1964.
Weintraub: desmantelamento de conquistas e retrocesso na educação
O professor Erasto Fortes afirma que inúmeras conquistas da educação brasileira foram desmanteladas pelo ex-ministro Abraham Weintraub. “Ele foi para cumprir um papel de destruir políticas alcançadas."
Para Francisco Borges, o ministério não teve ação quando precisava e Weintraub não estava lá para comandar a educação. “Por ser um ministro ideologista, ele chegou à pasta afirmando que as gestões passadas eram criminosas”, relembra.
O professor Jorge Geovani discorda da afirmação de que Weintraub não fez nada enquanto ministro. “O que acontece é que a população estava acostumada com uma doutrinação e o governo atual mudou a política, passou a tratar a educação de forma mais nacionalista e envolvendo menos os partidos nas políticas educacionais”, afirma.
Polêmicas com ministros e Bolsonaro atrapalham desenvolvimento acadêmico nas universidades
Uma marca da gestão MEC no governo Bolsonaro é o distanciamento com as universidades. A prática foi marcada quando o ex-ministro Weintraub afirmou que as instituições públicas de ensino superior são "um antro de balbúrdia" e "contavam com plantações de maconha" nos laboratórios.
Erasto Fortes afirmou que este tipo de polêmica enfraquece as universidades. “Diariamente, a universidade deve estar organizada para se defender de ataques. (Essas polêmicas) vão para os jornais no dia seguinte e fazem com que boa parte da população acredite, afinal é um governante que está falando”, manifesta.
Para Francisco Borges, as polêmicas afetam enormemente o desenvolvimento acadêmico. “É como se você dissesse que o mantenedor não gosta das filiais. Isso é um absurdo. E isso aconteceu com o Weintraub”, explica. O especialista também pondera que outros ministros não tiveram essa postura
O professor Jorge Geovani afirma que é necessário aceitar o fato de que a universidade não está formando alunos apenas do ponto de vista acadêmico. “A maioria das universidades formam militantes. A gente não precisa de militante, a gente precisa de cientista”, diz.
Decotelli e informações falsas em currículo profissional
Após a saída de Abraham Weintraub do MEC, Carlos Alberto Decotelli foi escolhido para assumir o cargo de ministro da educação. No entanto, não chegou nem a tomar posse após polêmicas que envolveram o currículo do professor.
A primeira se deu quando o reitor da Universidade de Rosário, na Argentina, Franco Bartolacci, afirmou que o professor não tinha o título de doutor pela instituição, conforme constava no currículo. Segundo o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a própria universidade, Decotelli não concluiu nenhum programa de pós-doutorado na Universidade de Wuppertal, na Alemanha.
Milton Ribeiro assume MEC após Weintraub
Milton Ribeiro, pastor presbiteriano, professor e ex-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, assumiu a pasta após polêmica com Decotelli. Ele pegou o desafio da gestão do Enem em momento de pandemia. Também fez declarações polêmicas, como quando afirmou que assumiu um “cargo espiritual”.
De acordo com Erasto Fortes, o ministro é ligado à iniciativa particular e não entende plenamente a função que tem em um país laico. “Ele confunde o papel dele como gestor em um estado laico. Ele não pode ser atravessado por nenhum credo religioso”, declara.
Para Francisco Borges, Milton “é uma pessoa que ouve mais”. Mas o professor afirma que a sensação é de que o ministro é “refém da presidência”. E complementou: "Até agora o Milton não fez nada. Ele só deu continuidade ao Enem que estava planejado”.
Jorge Geovani avalia que o currículo acadêmico de Milton é muito bom. Ele ainda disse que o problema é que, por vezes, “os ministros são impedidos de trabalhar”. Segundo o professor, o Supremo Tribunal Federal (STF), por exemplo, interfere nas políticas propostas pelo MEC. "No Enem, por exemplo, tentaram atrapalhar", diz.
Novo Fundeb foi um passo importante graças ao Congresso Nacional
Mesmo ocorrendo durante a gestão do presidente, o chefe do executivo e o MEC pouco tem a ver com a aprovação do novo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). A base aliada tentou barrar parte da regulamentação do fundo e fez forte oposição para que ele não fosse aprovado com exclusividade para escolas públicas.
Todos os especialistas consultados concordam que o novo Fundeb é satisfatório. Erasto Fortes, contudo, fez uma ressalva: “Eu acredito que a União poderia participar com uma contribuição maior. A parte da União é insatisfatória”.
Com as novas regras, a partir deste ano, a contribuição da União aumentará gradativamente até 2026. No fim da série, a participação do governo federal, que hoje é de 12%, chegará a 23%.
A militarização das escolas públicas e a maneira como a questão é conduzida
De acordo com Erasto Fortes, a militarização das escolas públicas e a maneira como o MEC trata o tema é um problema muito sério. “Isso desvia recursos das escolas públicas civis e cria um duplo sistema educacional, como se algumas escolas tivessem condições de ter melhores recursos, as militarizadas, e as outras são deixadas de lado”, avalia.
O Ministério da Educação informou ao Eu, Estudante que, em 2021, pretende adicionar mais 54 escolas no modelo cívico-militar. No ano passado, 21 instituições aderiram ao programa e a previsão é que cada uma receba R$ 1 milhão por ano, segundo o MEC.
Movimentos estudantis desaprovam MEC de Bolsonaro
Para a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), a postura do Executivo atual no MEC cria um cenário de instabilidade desde o início.
Em nota conjunta solicitada pelo Eu, Estudante, os movimentos desaprovam as políticas educacionais até aqui. “O MEC, em dois anos, teve quatro ministros, e foi utilizado como um meio de aparelhamento ideológico ao autoritarismo e negacionismo do próprio governo”, afirma o texto.
UNE e Ubes afirmam que o ministério vai na contramão do esforço geral para a afirmação de ações que garantam as aulas em momento de pandemia.
“Não foi apresentado nenhum projeto, e sim, cortes e desmontes. Na pandemia, que muitos esforços deveriam ser feitos para garantir o acesso à educação e o retorno às aulas com segurança, ele (o MEC) faz o contrário”, explica a nota.
A pasta não escuta os próprios alunos, segundo as organizações estudantis. “No Enem, sequer ouviu os estudantes e optou por manter a prova no pior momento, o que gerou um recorde de abstenção”, afirmam.
As associações estudantis alertam para a grave interferência feita pelo governo em reitorias de universidades e institutos federais. “(Bolsonaro) intervém na escolha de reitores, ferindo a autonomia universitária e processos democráticos já consolidados. Já são 20 intervenções até o momento.”
ANPG também é crítica às gestões
"Sem motivo para comemorar". É assim que a Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) avalia a gestão do Ministério da Educação desde janeiro de 2019.
Em nota enviada ao Eu, Estudante, a associação lembra dos piores momentos do MEC até aqui. Entre as piores ações, segundo a entidade, está a interferência na verba do ensino federal: "o Ministério da Educação bloqueou uma parte do orçamento das 63 universidades e dos 38 institutos federais de ensino".
A nota também destaca a relação da pasta com as universidades, numa postura autoritária. "É preciso ressaltar que, nesses últimos anos, houve muitos ataques à autonomia administrativa e financeira das universidades", diz o texto.
Os prejuízos, segundo os pós-graduandos, perdurarão na educação do país. "São traumas difíceis de serem revertidos, já que são gestões autoritárias e que inviabilizam o livre debate de ideias, algo tão necessário para a produção de ciência e conhecimento", reflete a ANPG.
Leia nota da Ubes e da UNE na íntegra:
"A UNE e UBES consideram que o Governo Bolsonaro, desde o início, tem criado um cenário de instabilidade, e não é diferente na Educação. O MEC, em dois anos, teve quatro ministros, e foi utilizado como um meio de aparelhamento ideológico ao autoritarismo e negacionismo do próprio governo.
Não foi apresentado nenhum projeto, e sim, cortes e desmontes. E na pandemia, que muitos esforços deveriam ser feitos para garantir o acesso à educação e o retorno às aulas com segurança ele faz o contrário. No Enem, sequer ouviu os estudantes e optou por manter a prova no pior momento, o que gerou um recorde de abstenção.
A total falta de estratégia e investimento na Educação irá trazer atrasos e ainda mais desigualdades ao país. Esses imensos prejuízos levarão anos para ser sanados.
Na universidade e na pós-graduação propõe corte de orçamentos (17,5%), intervém na escolha de reitores, ferindo a autonomia universitária e processos democráticos já consolidados. Já são 20 intervenções até o momento..
Na educação básica, o Fundeb Permanente foi aprovado por conta da imensa pressão da sociedade civil, entidades e parlamentares que defendem a educação, e o governo sequer apontava que ele seria renovado.
É essa pressão, mobilizações e resistência das entidades que têm impedido ainda mais retrocessos."
Leia nota da ANPG na íntegra:
"ANPG não comemora a atual gestão do MEC
Sem motivos para comemorar. É assim que a Associação Nacional de Pós-graduandos, ANPG, avalia a gestão do Ministério da Educação desde janeiro de 2019. O primeiro grande impacto para os estudantes da pós-graduação aconteceu em maio de 2019, quando a Capes suspendeu a concessão de bolsas de mestrado e doutorado, isto é 5613, o que impediu que os estudantes selecionados para novas pesquisas recebessem bolsas que tinham verbas já previstas em 2019. Mas a avalanche de más notícias não parou por aí. No mês seguinte, em abril, o Ministério da Educação também bloqueou uma parte do orçamento das 63 universidades e dos 38 institutos federais de ensino.
Tudo isso aliado a um discurso de perseguição do então Ministro Abraham Weintraub, que afirmou que iria cortar recursos de universidades que não apresentassem desempenho acadêmico esperado e estivessem fazendo o que o ministro definiu como "balbúrdia" – atitude que demonstrou um grande desconhecimento sobre as importantes pesquisas desenvolvidas pelas Universidades Federais.
Mas os estudantes não se calaram e junto com a sociedade deu demonstrações vivas
de que estava disposta a lutar pela democracia, a educação e a ciência. Os milhões de brasileiros que tomaram as ruas nas históricas manifestações de 15 e 30 de Maio de 2019 deixaram claro que há energia cívica para resistir ao desmonte da educação e da ciência e à entrega do patrimônio nacional.
No ano seguinte, em março de 2020, os estudantes de pós-graduação sentiram mais um impacto negativo: a implementação da Portaria 34, um novo modelo de concessão de bolsas que deixou muitos estudantes já selecionados sem o aporte financeiro, além de deixar vulneráveis programas novos abertos em todo o país, que ainda tem baixa avaliação e precisam de financiamento para progredir. Como consequência dessa portaria, o fomento à pesquisa se concentrou no sudeste.
E em junho de 2020, prestes a ser demitido, Weintraub ainda tentou revogar Portaria nº 13/2016 que estipulava a reserva de vagas a negros, indígenas e pessoas com deficiência em programas de pós-graduação de instituições federais de ensino superior. A portaria estava em vigor desde maio de 2016 e foi fruto de muita luta da ANPG. Diante da ameaça, a ANPG realizou uma grande mobilização e conseguiu reverter a revogação.
É preciso ressaltar que nesses últimos anos houve muitos ataques à autonomia administrativa e financeira das universidades. Um desses ataques foi por meio da tentativa de implementação do Future-se. Esse projeto visa enfraquecer o corpo técnico-administrativo e de professores das universidades por meio da contratação por OSs e por regimes precarizados de trabalho. Além disso, o projeto desobriga o estado brasileiro em propiciar o financiamento público das universidades, o que colocaria em risco a produção de pesquisas realizadas nas Universidades.
E o mais dramático: as intervenções nas universidades que o MEC e Bolsonaro fazem desde 2019 por meio da imposição de reitores não eleitos. São cerca de 19 instituições sob intervenção, entre universidades e Institutos Federais, e isso tem gerado grande instabilidade na comunidade acadêmica. São traumas difíceis de serem revertidos, já que são gestões autoritárias e que inviabilizam o livre debate de ideias - algo tão necessário para a produção de ciência e conhecimento com excelência."