Ensino Domiciliar

Lei distrital do ensino domiciliar pode ser considerada inconstitucional

Homeschooling divide opiniões e coloca em dúvida o futuro da educação. Quando a pauta foi discutida no STF, ministros consideraram prática ilegal

João Carlos Magalhães*
postado em 05/02/2021 20:23 / atualizado em 05/02/2021 20:29
 (crédito: Jessica Lewis/Unsplash)
(crédito: Jessica Lewis/Unsplash)

Enquanto a Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) e pais interessados em passar a ensinar os filhos em casa (movimento que ganhou força com a pandemia e o início do ensino a distância na educação básica) defende o direito de poder praticar o homeschooling, associações de educação e sindicatos de professores se posicionam contra esse formato.

A discussão está mais acirrada agora que a Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (Anec) e o Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF) apresentaram uma ação no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) em que afirmam a inconstitucionalidade da Lei Distrital nº 6.759/2020, que estabelece a legalidade da educação domiciliar no Distrito Federal. O processo foi protocolado em 26 de janeiro.

A legislação que regulamenta a prática, conhecida como homeschooling, é de autoria do próprio Poder Executivo do DF junto aos deputados distritais Eduardo Pedrosa (PTC), João Cardoso (Avante), Júlia Lucy (Novo) e Rodrigo Delmasso (Republicanos).

Para a Anec e o Sinpro-DF, a Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) não tem competência legislativa para tratar do assunto. “Seja pela exigência de lei federal que a regule, seja, ainda, por afrontar diversos outros dispositivos da Constituição Federal, do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação”, diz trecho da liminar enviada ao TJDFT.

A lei estabelece que a família deve demonstrar aptidão técnica para o desenvolvimento das atividades pedagógicas ou contratar profissionais capacitados, de acordo com as exigências da Secretaria de Educação. Posteriormente, os alunos seriam supervisionados pelo conselho tutelar e participariam de avaliações, além de receberem diploma de conclusão da fase em que estiverem.

Após ter sido sancionada pelo governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB), a regulamentação passou a vigorar 45 dias depois, em 30 de janeiro de 2021, e o Poder Executivo tem 90 dias, até 16 de março deste ano, para estabelecer formas de regulamentar a aplicação da lei.


Para Anec, lei distrital não passa de malabarismo político

A Associação Nacional de Educação Católica do Brasil argumenta que não há, no Brasil, legislação capaz de fazer o monitoramento das condições socioemocionais e de aprendizagem dos alunos. Hugo Sarubbi Cysneiros, advogado da Anec, explica porque no entendimento da associação, o Buriti não pode sancionar uma lei que permite o homeschooling: “é competência privativa da União legislar sobre as diretrizes e bases da educação”.

Advogado da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (Anec), Hugo Sarubbi Cysneiros afirma que o homeschooling desvaloriza os professores
Advogado da Associação Nacional de Educação Católica do Brasil (Anec), Hugo Sarubbi Cysneiros afirma que o homeschooling desvaloriza os professores (foto: Arquivo Pessoal)

O jurista lembra que, em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) proibiu as práticas de ensino domiciliar e que esse modelo não existe na legislação brasileira. “A constituição diz que os modelos de ensino serão disseminados pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação). Dentre os modelos disponíveis para educação brasileira, o ensino domiciliar não existe”, afirma.

Sarubbi Cysneiros define a norma distrital como um “malabarismo dos legisladores”, que encontraram soluções para driblar o entendimento técnico do assunto. “Sala de estar não é instituição”, justifica.

A Anec argumenta ainda que o homeschooling está ligado a ter uma boa condição financeira. “O pai que mora na periferia não consegue dar a mesma qualidade de ensino que o responsável bem de vida”, relata.

Mais um problema para o advogado é a desvalorização dos professores causada pelo ensino domiciliar. “A concepção do homeschooling, de maneira direta, desvaloriza o profissional de educação. Como se a formação do professor fosse algo trivial e secundário...”, critica.


Ibaneis não vê inconstitucionalidade

Buriti não crê em inconstitucionalidade da matéria
Buriti não crê em inconstitucionalidade da matéria (foto: Lúcio Bernardo Jr / Agência Brasília)

O governador Ibaneis Rocha, afirma, por meio de nota enviada ao Eu, Estudante, que não há motivo para tornar a lei inconstitucional, uma vez que o regimento passou por processo legislativo. “Houve processo legislativo absolutamente hígido e, por essa razão, (o governador) pugna pela improcedência da ação direta de inconstitucionalidade”, explicou a assessoria do chefe do Executivo local.

O deputado João Cardoso (Avante), um dos redatores da matéria, afirmou que, ainda quando a proposta era um Projeto de Lei (PL), passou por um estudo técnico, pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da CLDF e pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT).

“Há, portanto, sólida fundamentação jurídica para rebater a acusação de que a norma fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, o que acredito que será feito agora pela CLDF frente ao TJDFT”, diz.

Os outros autores da regulamentação, Eduardo Pedrosa (PTC), Júlia Lucy (Novo) e Delmasso (Republicanos), não atenderam aos contatos da reportagem.


STF já negou recurso que pedia reconhecimento de direito a ensino domiciliar


Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou como ilegítimo o ensino domiciliar, visto que não há legislação que regulamente preceitos e regras aplicáveis a essa modalidade de ensino.

O julgamento teve início em Canela (RS), onde a Secretaria de Educação do estado não aceitou o ensino domiciliar de um estudante de 11 anos e recomendou que os responsáveis fizessem matrícula na rede regular de ensino.

A família optou por entrar com uma ação na Justiça, que foi negada tanto em primeira instância quanto no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). Para a corte gaúcha, inexistindo previsão legal de ensino na modalidade domiciliar, não haveria direito líquido e certo a ser amparado no caso, ou seja, o estudante precisaria fazer parte da rede regular de ensino.

A negativa do STF não foi considerada uma derrota para os defensores do homeschooling. Os ministros da Casa não seguiram o relator, Luís Roberto Barroso, que julgou correto educar os filhos em casa. Para Barroso, além de constitucional, o ensino domiciliar é um direito dos pais independentemente de norma regulamentadora. Apenas Edson Fachin seguiu Barroso no julgamento.

O voto que divergiu do de Barroso foi do ministro Alexandre de Moraes, seguido pelos ministros Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Dias Toffoli e Cármen Lúcia. Ele deixou claro que o ensino domiciliar é uma possibilidade legal, faltando apenas regulamentação para a prática, que, portanto, não poderia ser estabelecida. O posicionamento foi considerado uma vitória para a comunidade favorável ao homeschooling, que julgou haver segurança jurídica suficiente para o tratamento legal da matéria pelo Poder Legislativo.


Ubes afirma que homeschooling é um retrocesso


A União Brasileira de Estudantes Secundaristas (Ubes) considera que o homeschooling representa um atraso na educação. Nos perfis da entidade nas redes sociais, a instituição argumenta que o ensino domiciliar significa deixar os alunos longe das escolas.

“Vai faltar estrutura para todos. As escolas são mais bem estruturadas e têm um currículo mais bem planejado do que as escolas domésticas”, diz o manifesto, que segue enumerando porque as aulas em casa seriam um problema. “Em casa falta: local adequado, internet de qualidade, livro, computador e, muitas vezes, alimentação.”

Outro problema apontado pela Ubes é a relação entre os discentes: “os estudantes não vivenciarão viagens e projetos da escola ou da turma, almoçar com os amigos, participar de dinâmicas e outras experiências escolares”. Para a organização estudantil, “as relações sociais contribuem e são importantes para o aprendizado”. A Ubes ainda destaca que os pais de homeschooling não são necessariamente treinados e qualificados para o ensino.

 

Veja nota da Ubes na íntegra:

Homeschooling é direito dos pais e respeito à individualidade do aluno, defende Aned

Para o diretor de relações institucionais da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned) e diretor do Global Home Education Exchanged (ghex), Carlos Vinícius Reis, há muito ruído a respeito do ensino domiciliar.

 Carlos Vinicius Reis, diretor da Aned, já discursou sobre educação domiciliar na Câmara dos Deputados
Carlos Vinicius Reis, diretor da Aned, já discursou sobre educação domiciliar na Câmara dos Deputados (foto: Arquivo Pessoal)

Ele argumenta que é direito dos pais dirigir a educação dos filhos e que o homeschooling respeita a individualidade, uma vez que o aluno não está dentro de uma sala de aula com outros, e pode ser tratado de forma exclusiva.

O porta-voz da Aned pondera que esse respeito à individualidade não se reflete em falta de socialização, até porque, na escola, não necessariamente o aluno terá contato com grande diversidade. “Em um colégio, o discente interage com pessoas da mesma classe social, com o mesmo pensamento”, alega.

“Já no ensino domiciliar, o estudante tem outras oportunidades de socialização com pessoas diferentes em eventos culturais, exposições, bibliotecas, eventos esportivos”, exemplifica.

Carlos Vinicius opina que a educação escolar restringe a evolução de acordo com um contexto pré-determinado. “A abordagem pedagógica tem um padrão de ensino que é aplicado de maneira transversal aos alunos”, afirma.

Para o diretor da associação, o ensino regular não é errado. “Pelo contrário, a escola é uma abordagem que tem um padrão, mas existem outras abordagens.”

A Aned fez uma pesquisa com adultos que passaram pelo homeschooling. De acordo com o levantamento, 66% das pessoas que foram educadas em casa acreditam que o ensino domiciliar é uma vantagem na vida adulta. Outra pesquisa mostrou que 58% dos adultos que tiveram educação domiciliar são "extremamente felizes".

Carlos Vinícius Reis defende que o homeschooling exige dos alunos outras habilidades. “O estudante não precisa ser um autodidata. Mas no ensino domiciliar, o educando aprende a aprender”, argumenta.

 

*Estagiário sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação