A história é repleta de pessoas que mudaram o destino da humanidade e muitas mulheres foram protagonistas de revoluções que marcaram épocas. Dandara foi líder do Quilombo dos Palmares. Carmen Miranda, rainha de um Brasil tropical. Marielle Franco, vereadora feminista. Independentemente do local de atuação, o que une cada personagem é a capacidade de inspirar outras a serem autoras do próprio destino. É o caso da professora Gina Vieira, 49 anos, que tem incentivado o protagonismo feminino nas escolas públicas do DF.
Dedicada e apaixonada pelo que faz, Gina escolheu a profissão por acreditar que “a educação é uma ferramenta poderosa para transformação social”. Em 2003, após anos de trabalho, percebeu que a escola, no formato tradicional, não mobilizava os estudantes. Veio, então, a necessidade de reforçar a própria formação. Buscou ferramentas para lidar com uma educação ainda muito atrelada à lógica da subalternidade e da obediência. Repensou processos e privilegiou a avaliação formativa dos alunos. Ao unir o dom de educar à capacidade de transformar, criou o projeto Mulheres Inspiradoras, buscando a valorização da figura da mulher.
A ideia nasceu em 2014, após Gina assistir a um vídeo postado por uma aluna em uma rede social. Nas imagens, a jovem, de 13 anos, apresentava-se dançando. “Eu fiquei muito impactada. O vídeo tinha um apelo erótico e desqualificava a figura da mulher. Os comentários eram horríveis, mas ela se sentia elogiada”, explica a professora. Com o vídeo, decidiu então estudar o motivo de tal publicação. “Descobri que faltam, para as meninas, referências de mulheres que fujam desse estereótipo da mulher reduzida a objeto sexual”, diz.
Gina entendeu que a cultura atual oferece o apelo sexual como herança para as meninas. O projeto Mulheres Inspiradoras apresenta justamente o objetivo de mudar a visão dos jovens sobre o papel da mulher na sociedade. “Foi uma tentativa de estabelecer um diálogo com meninas e meninos sobre a necessidade de contestar essa cultura de que o único valor que as mulheres têm está relacionado a ser bonita ou gostosa. Essa mesma cultura ensina para os meninos que as mulheres não são pessoas, mas propriedades, objetos dos quais podem dispor a qualquer momento”, explica.
Protagonismo
Inicialmente, a professora buscou trabalhar o protagonismo dos estudantes de uma das unidades de ensino fundamental de Ceilândia. Atualmente, o trabalho alcança cerca de 50 escolas do DF. “Eu optei por metodologias diferenciadas, que ajudassem os estudantes a serem sujeitos do processo educacional”, lembra. Nesse contexto, Gina propôs aos alunos a leitura de seis obras de autoria feminina, incluindo escritoras de idade similar a deles, como Anne Frank e Malala Yousafzai. “Essa história de que não somos protagonistas e que dependemos de um homem é completamente contestada pela realidade”, defende a professora.
Outra etapa do projeto consistiu em levar os alunos a conhecer mulheres inspiradoras da comunidade onde moram. Na fase final, foram convidados a escolher a mulher inspiradora de suas vidas. “Foi lindo. Entrevistaram mães, avós e bisavós, e puderam conhecer suas histórias. Tinha aluno que não sabia dizer em que cidade a avó nasceu, como o pai conheceu a mãe. E eles voltavam da entrevista com o peito estufado, olho brilhando, e dizendo que a mãe é muito mais inspiradora do que imaginava”, destaca.
Os textos produzidos pelos alunos após as entrevistas foram reunidos e publicados em um livro, que leva o mesmo nome do projeto. O objetivo, explica Gina, é contribuir para o debate sobre a necessidade da desconstrução do machismo, dando visibilidade para grandes mulheres que, muitas vezes, ficam esquecidas. “O projeto foi avaliado positivamente pelos próprios alunos. As mães agradecem, porque o projeto as aproximou dos filhos e se sentiram muito valorizadas em ter as histórias contadas em um livro”, recorda.
Entre os ganhos, a idealizadora do projeto diz que o projeto ampliou o repertório de leitura dos alunos e instigou a priorização da escrita autoral, além do fortalecimento dos vínculos familiares e mudanças do ponto de vista do comportamento desses alunos. O projeto Mulheres Inspiradoras deu tão certo que conquistou diversos prêmios. O primeiro deles, em 2014, foi o 4º Prêmio Nacional de Educação e Direitos Humanos, apoiado pelo Ministério da Educação. Em seguida veio a conquista do 8º Prêmio Professores do Brasil e do 10º Prêmio Construindo a Igualdade de Gênero. A iniciativa também ganhou o 1º Prêmio Ibero-Americano.
Revolução na quebrada
Professor de história da Secretaria de Educação há seis anos, Carlos André de Jesus Campos, 39 anos, diz que participou do curso por curiosidade. “Inicialmente, pensei que era exclusivo para mulheres, mas me surpreendi”, conta. De acordo com o educador, as perspectivas mudaram desde a primeira aula: “Esse projeto foi um divisor de águas em minha vida, passei a enxergar a condição da mulher com um olhar humano, passei a confrontar e combater o machismo que há em mim e que, historicamente, oprime nossa sociedade”, conta.
Por meio do curso, Carlos teve a possibilidade de aplicar o projeto no CEF 28 do Sol Nascente, a “quebrada” dele, como o professor define. “Redesenhamos o projeto dentro das nossas características, foi aí que surgiu o Elas do Sol — Mulheres Inspiradoras da Quebrada. Esse projeto veio à tona como um instrumento de prevenção e correção no enfrentamento à violência contra a mulher, a partir da propagação de histórias de mulheres inspiradoras da quebrada”, conta o professor.
Para quem acompanhou o processo de desenvolvimento dos alunos ao longo da aplicação do projeto, os frutos são evidentes. “Inicialmente, os meninos estranharam, mas, a partir da leitura dos livros, das rodas de conversa, tudo foi se encaixando, os alunos se adaptaram muito bem ao projeto”, conta Carlos. De acordo com o professor, houve transformação, ampliação do senso crítico, fortalecimento do sentimento de pertencimento à comunidade escolar. “Lembro-me que alguns alunos me mandavam mensagem ou ligavam em pleno domingo para falar de algum caso de machismo, violência que de alguma maneira testemunharam, seja em um filme, música ou pessoalmente”, recorda.
Aprendizado
Sete anos após a participação no projeto Mulheres Inspiradoras, a vendedora Stephany Soares da Silva, 21, conta que o aprendizado ainda faz parte do dia a dia: “O impacto do projeto ecoa na minha vida até hoje”, garante. De acordo com ela, o exemplo que teve em sala de aula ressignificou sua maneira de enxergar o mundo. “Fez-me pensar sobre questões que, por mais que fossem cotidianas, não eram observadas, comentadas e muito menos questionadas por mim ou por algum dos meus colegas na época”, diz.
O amor-próprio também cresceu durante o projeto, conforme explica Stephany. “Comecei a observar mais nossas guerras e lutas. Passei a observar o que de fato eram nossas fraquezas, mas, principalmente, quanto de força temos para aguentar muita coisa”, ressalta a vendedora. O projeto ajudou a construir uma relação empática com o diferente. “Por incrível que pareça, não se resume somente a nós, mulheres, mas se estende também aos homens, que honram ou querem honrar de maneira devida a esposa, mãe ou filha. É um caminho de muito aprendizado”, garante.
Sucesso amplia a iniciativa
Com o reconhecimento, surgiu o plano de ampliar o projeto. Gina lembra que, em 2017, foi desafiada a transformar o projeto em um programa para ser aplicado em outras escolas. “Entendemos que o mais importante era levar para os professores a oportunidade de passar pelo processo que eu vivi. De ressignificarem práticas pedagógicas e levar para sala de aula uma formação que os ajude a compreender questões relacionadas a uma agenda educacional antissexista e antirracista”, comenta.
O programa Mulheres Inspiradoras foi criado com o intuito de capacitar os profissionais da educação. Para isso, seleciona docentes para participarem de uma formação de 180 horas, em que são convidados a refletir sobre práticas pedagógicas e a construir projetos autorais que tenham compromisso com uma agenda educacional. “O professor não é um multiplicador de mulheres inspiradoras. Acreditamos no professor autor da própria prática. Então, eles recebem um arcabouço teórico, orientação e acompanhamento para criarem os projetos, desenvolvidos com enfoque na leitura e escrita autoral”, explica Gina.
O programa está com inscrições abertas para 2021. Os cursistas terão, ao longo da formação, a oportunidade de serem orientados para escrever projetos pedagógicos autorais. O cadastro poderá ser feito até 16 de março. “Esperamos um dia alcançar todas as unidades escolares, mas, no momento, o foco está nos professores e professoras que atuam nos anos finais do ensino fundamental e também no ensino médio”, diz a professora Ruth Meyre, diretora de Educação do Campo, Direitos Humanos e Diversidade da Secretaria de Educação do DF.