Polêmica

Entidades contestam aprovação de texto-base do ensino domiciliar

Expectativa recai agora sobre a tramitação do projeto no Senado. Retrocesso na educação é um dos principais argumentos dos opositores

Jáder Rezende
postado em 19/05/2022 21:25 / atualizado em 20/05/2022 13:25
 (crédito: Jessica Lewis/Unsplash)
(crédito: Jessica Lewis/Unsplash)

Reprovado por centenas de entidades educacionais, o texto-base do projeto de lei que regulamenta o ensino domiciliar foi acatado nesta quarta-feira (17) no plenário da Câmara dos Deputados por 264 votos favoráveis, 144 contrários e duas abstenções. Manifesto contrário a essa modalidade de ensino, que segue em debate no Congresso Nacional, leva a assinatura de mais de 400 instituições. O documento, divulgado na terça-feira (17), conclui que a ideia “passa longe do que precisa ser feito para melhorar a educação no Brasil e evidencia uma inversão de prioridades do governo federal”.

A chefe de Educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância no Brasil (Unicef), Mônica Dias Pinto, lembra que a instituição já havia se posicionado contra o ensino domiciliar em 2021. “A Constituição de 88 estabelece que toda criança e adolescente têm direito à educação de qualidade e que este é um dever do Estado e da família, e a escola é o equipamento público aonde o Estado pode ter olhar protetivo”, diz. Ela destaca que países avançados se empenharam em estabeleceram políticas de base comum curricular e que é papel da escola desenvolver projetos pedagógicos. “O Brasil levará décadas para para melhorar seus indicadores de aprendizagem. Esse projeto não faz o menor sentido. Devemos acelerar o que já conquistamos e não o contrário”, diz.

Risco iminente

A diretora de Educação e Culturas Infantis do Instituto Alana, Raquel Franzim, observa que o ensino domiciliar oferece “risco direto” à educação de qualidade, comprometendo conquistas históricas. “Com essa prática, a escola e também a família ficam completamente vulnerabilizadas. Priorizar esse tipo de matéria, afetando a educação, é vergonhoso para o país. Rifar a educação de crianças dessa forma vai gerar um grande ônus opara a educação pública e um conteúdo muito pequeno de políticas públicas”, diz, observando que a implantação do modelo abre precedente perigoso para crianças mais vulneráveis e que são vítimas de violência física e sexual.

Raquel Franzim observa ainda que efeitos da pandemia, como abandono e evasão escolar podem prosseguir, caso a educação domiciliar seja oficializada. “Trata-se de uma prática elitista, voltada à pessoas com condições socioeconômicas elevadas, associada a religiões. Acredito que, sozinhas, as famílias não darão conta dessa tarefa. Esperamos que o Senado corrija esse grande erro”, diz.

Equívoco

A gerente da Câmara de Educação Básica da Associação Nacional de Educação Católica (Anec), Roberta Guedes, engrossa o coro dos que manifestam grande preocupação com a proposta, sobretudo, segundo ela, em um momento em que o país amarga um processo histórico de defasagem na educação. Para ela, a aprovação do texto-base em caráter de urgência foi, no mínimo, equivocada.

"A família e a escola precisam caminhar juntas, não separadas. Não somos contra o ensino em casa, mas contra o formato apresentado, de forma intempestiva. Os maiores especialistas do país já se posicionaram contrário, inclusive do Conselho Nacional de Educação. É preciso que haja uma discussão técnica, madura, envolvendo especialistas da área. Esperamos que o Senado acolha essa pauta com cautela, não de maneira intempestiva e arbitrária”, alerta Roberta Guedes, mais uma a lembrar que a modalidade do ensino remoto durante a pandemia afetou significativamente os estudantes. “Os efeitos foram nocivos para as crianças afastadas da escola, sobretudo emocional e de aprendizado. Precisamos de políticas afirmativas. É um pauta árida, mas que deve ser encarada”, diz.

Olhar protetivo

Mestre em psicologia escolar e do desenvolvimento humano, ex-diretora do Centro de Educação a Distância da UnB e consultora nas áreas da educação infantil e educação a distância, a pedagoga Maria de Fátima Guerra aletra para a necessidade do diálogo entre família e escola para que o novo modelo de ensino seja efetivado. Ela considera a educação domiciliar importante para crianças e adolescentes com problemas sérios de saúde, sejam permanentes ou provisórios, mas alerta é necessário o respaldo da lei para que esse processo de escolarização seja legitimado. E lembra que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) não contempla o ensino domiciliar.

A estudiosa frisa que a essência do processo de educação é a integração de agências da sociedade , em suas mais diversas áreas. “Educação não é apenas conteúdo. Não se aprende a conviver em sociedade, valores sociais, se não se convive com o outro. Além da formação é preciso contexto, socialização, diálogo no dia a dia. Sem contar que a criança ensina a criança valores sociais. A educação integral vai muito além do conteúdo”, diz Fátima Guerra.

A Associação Nacional da Educação Católica (Anec), também está se mobilizando para que essa nova modalidade não ganhe espaço no país. "Somos uma associação favorável ao diálogo, mas a pauta do homeschooling nos preocupa muito. Entendemos que a educação precisa extrapolar os muros de uma discussão político-partidária e ir para uma discussão de uma política educacional de equidade social. Enquanto tratarmos a Saúde e Educação dessa forma, estamos prejudicando o acesso à serviços de qualidade e à melhoria e desenvolvimento das pessoas como seres humanos e como sociedade”, afirma a Roberta Guedes, gerente da Câmara de Educação Básica da associação.

Alerta

A União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), União Nacional dos Estudantes (UNE), e a Associação Nacional de Pós-graduandos (ANPG) encabeçam a lista das entidades que condenam a ideia do ensono domiciliar. Por meio de nota, elas frisam que, desde da criação do projeto, alertam que a educação regular necessita de mais investimentos, principalmente para superar os desafios históricos e intensificados na pandemia.

“É inaceitável que com tantos obstáculos enfrentados pelos estudantes, incluindo os cortes orçamentários e a ausência de soluções, o governo Bolsonaro coloca como prioridade esta pauta de costumes - um projeto que está em total desconexão das urgências dos estudantes e dos brasileiros.
É preciso lembrar que a modalidade de ensino domiciliar ataca as finalidades da educação previstas no artigo 205 da Constituição Federal e amplia a desobrigação do Estado com a garantia do direito humano à educação de qualidade para todas as pessoas”, registra.

Ressaltam ainda na nota “a importância da escola para formação do indivíduo, para ampliar sua visão crítica e plural na sociedade. E ainda, o espaço de proteção, quanto à identificação de violências e abusos, que muitas vezes ocorrem nas casas de crianças e jovens”, e que “a aprovação do PL 2.401/2019 é mais um retrocesso para a educação brasileira, que não contempla a realidade e necessidades dos estudantes do país, mas satisfaz aos interesses de apoiadores do governo Bolsonaro, esse que tem operado uma destruição do projeto educacional brasileiro.”

 

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