O jogador de xadrez Ygor Souza, 22 anos, promoveu o desafio 20x1 no Centro de Ensino Médio 02 da Ceilândia (CEM 02). A demonstração ocorreu ontem (23/08), às 9h, quando ele enfrentou e venceu, de forma simultânea, 20 oponentes em duas rodadas. O jogador foi classificado para o Campeonato Mundial de Xadrez Universitário, na Bélgica, e pretende embarcar para o país em 9 de setembro, mas voltou às suas origens ao retornar para o colégio onde se formou.
Durante os três anos do ensino médio, Ygor desenvolveu suas estratégias de jogo no CEM 02. Desta vez, ele retornou ao colégio para retribuir à comunidade parte do que lhe foi ensinado. Estudante de ciência política na Universidade de Brasília (UnB), Ygor conta que sua passagem na escola foi essencial para sua escolha de curso. “É justamente por isso que estou aqui hoje, realizando essa simultânea. É uma forma de voltar às raízes. Grande parte da minha formação política e do meu senso crítico foram criados aqui.”
Para promover o desafio, Ygor entrou em contato com a direção do CEM 02. O objetivo era divulgar sua iniciativa Xadrez de Rua, pensada em 2019 e retomada este ano. Na disputa, cada adversário que vencesse o estudante receberia R$ 50, como incentivo a prática do xadrez entre os alunos da escola. Mas ninguém levou o dinheiro para casa.
Foram duas rodadas, cada uma com 10 participantes. Ygor jogava de forma simultânea contra os oponentes. Ele, com as peças brancas, os adversários, com as pretas. Em uma hora e meia de partida, Ygor derrotou todos os adversários, que ficaram impressionados com a técnica do jogador. Beatriz Marques, 17 anos, foi a única menina a participar da segunda rodada do desafio. Ao todo, apenas duas jogaram. Ela conta que competir contra um profissional, para quem só jogava em casa por diversão, foi uma experiência única. “Ele é muito bom estrategicamente. Foi bom perder para ele”, afirma.
De peão a rei
Ygor Souza sairá de Ceilândia para competir internacionalmente no Campeonato Mundial de Xadrez Universitário (2022 FISU World University Championship), que ocorre na Antuérpia, Bélgica, entre 12 e 17 de setembro. “É a primeira vez em anos que estou ansioso para jogar uma competição”, conta Ygor.
Até agora, esse é o maior feito alcançado pelo estudante, que conta como o jogo de tabuleiro mudou a sua vida. “Antes do xadrez, eu era um garoto normal da periferia, que queria jogar bola, ser músico e era ‘estourado’ e desinteressado pelos estudos. Depois do xadrez, eu me tornei uma pessoa mais calma, mais pensativa. Quando comecei a estudar xadrez, percebi que deveria me dedicar mais em outras áreas também”, explica.
O professor de educação física Rogério Soares, 60 anos, acompanhou o desenvolvimento de Ygor desde 2013, quando o estudante começou a jogar. A história do jogador com o xadrez começou no Centro de Ensino Fundamental 20 de Ceilândia, em projeto liderado pelo professor Rogério. De lá para cá, Ygor se tornou quase invencível. “Há 7 anos eu não o derroto. Toda vez é 8x0, 8x1”, diz o professor.
De volta para casa
Relembrando o passado e as conquistas obtidas enquanto estudava no CEM 02, Ygor conta que voltar para o colégio é “como voltar para casa”. “Estar aqui é uma forma de me conectar com meu eu do passado e de me inspirar para essa competição.”
Ygor explica a importância dos professores na sua vida. “Eles ajudaram a formar o meu caráter. O Rogério foi e ainda é muito importante para o xadrez, um esporte ainda muito elitizado. Ele sempre me acompanhou, me ajudava a pagar as passagens para os campeonatos porque eu não tinha condições.”
Diretor do colégio, Eliel de Aquino fala sobre a importância de trazer um esporte elitizado para o centro da Ceilândia. “Nós temos alunos adolescentes, que sofrem vários tipos de influência, e queremos influenciar de forma positiva para que tenhamos a escola trabalhando em prol de uma comunidade que, muitas vezes, só é vista pelo lado negativo. Nós queremos trazer para o CEM 02 a educação inclusiva e participativa”, conta.
Responsável pelo ensino do xadrez no CEM 02, Rubens Palacios, 49 anos, construiu uma relação de amizade com Ygor. Professor de sociologia, ele explica o porquê de assumir o posto no colégio. “Como o xadrez não é massificado no Brasil, muitas vezes os professores de educação física não têm o domínio do conteúdo. Aqui na escola, sempre tive carta branca para selecionar os estudantes, treiná-los e levar para campeonatos, e o Ygor foi um deles.”
Para ele, o xadrez tem um papel social na comunidade ceilandense. “O xadrez ajuda a transcender esse contexto de dificuldades financeiras, familiares, conflitos e violência e traz esses meninos para um universo diferente e muito saudável. Sem contar os ganhos no que diz respeito à educação, à disciplina e à percepção de que o trabalho duro te leva a um resultado.”
Acessibilidade
O professor Rubens destaca, ainda, o fácil acesso ao xadrez. “É um esporte barato. Com um tabuleiro e dois jogos de peça você pode se divertir. Não precisa construir um ginásio, uma quadra ou ter outros equipamentos.”
O esporte pode ajudar a modificar, inclusive, trajetórias. O professor Rogério Soares conta que a maioria dos seus alunos são “de família pobre, pais separados, e crianças com vários problemas”. Por experiência, ele explica que a grande parte deles passam nos vestibulares justamente pela prática no xadrez. “O xadrez ajuda na disciplina, em matérias como biologia, física, química e matemática, que exigem um raciocínio lógico.”
O professor, que tem curso de xadrez e arbitragem, conta como o suporte de órgãos públicos e das escolas é importante para o incentivo das crianças e adolescentes no esporte. Ele destaca a vivência nos Centros de Iniciação Desportiva (CID) do Distrito Federal. Atualmente, apenas três CID’s (Gama, Recanto das Emas e Taguatinga) oferecem xadrez como modalidade. “A Federação [Federação Brasiliense de Xadrez] apoia muito, mas precisamos de um apoio governamental. Oferecer o xadrez nos centros de iniciação é fundamental para que encontremos novos talentos não só na escola, mas também na comunidade.”
Vaquinha
Para participar da competição, Ygor buscou ajuda da UnB para obter auxílio. A universidade não cobriu todos os gastos e por isso o estudante criou uma vaquinha virtual para custear as outras despesas da viagem. Sua meta é conseguir R$ 9.700 por meio da vaquinha. Até o momento, ele arrecadou somente R$ 1925. O jogador promete doar todo valor excedente a alguma instituição de caridade.
*Estagiária sob a supervisão de Ana Sá