Pandemia

Insegurança alimentar e queda nas matrículas impactam primeira infância

Estudo identifica impactos da pandemia na saúde, aspectos socioeconômicos e educacionais das crianças brasileiras de 0 a 6 anos

Eu Estudante
postado em 22/09/2022 19:09 / atualizado em 12/10/2022 17:51
. -  (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)
. - (crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Os impactos que a pandemia de covid-19 acarretaram na vida de meninos e meninas que estão na primeira infância foram estarrecedores . Mais de um terço da existência dessas crianças se passou no período pandêmico, com consequências diretas e indiretas no desenvolvimento infantil, revela a pesquisa “Desigualdades e impactos da covid-19 na atenção à primeira infância”, lançada pela Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, em parceria com o Itaú Social e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).

De acordo com o estudo, as medidas de suspensão das atividades presenciais, necessárias para conter a propagação do vírus, afetaram a dinâmica de matrículas em toda a educação básica, especialmente na educação infantil.

O cálculo das taxas brutas de matrículas (TBM) na creche e na pré-escola no Brasil traduziu em números os enormes prejuízos que a pandemia trouxe ao direito constitucional à educação para as crianças brasileiras. 

De 2019 a 2021, houve diminuição de quase 338 mil matrículas nas creches – retração de 2,8 pontos percentuais na TBM. Desse percentual, 2,5 p.p são referentes à rede privada de ensino – mais de 280 mil matrículas perdidas.

O mesmo foi observado na pré-escola, etapa obrigatória, com queda da TBM para 83,7% em 2021. De 2019 a 2021, a retração foi de 4,1 pontos percentuais, índice superior ao observado para as creches. Em números absolutos, a redução de matrículas foi de cerca de 315 mil entre 2019 e 2021, sendo 275 mil apenas em 2021.

Especialista em Monitoramento e Avaliação do Itaú Social, Esmeralda Correa Macana, pontua que a educação infantil é essencial para a progressão e transição para as etapas seguintes do ensino fundamental. Ela lembra que, na pandemia, o Brasil foi um dos países com maior número de dias com escolas fechadas e as crianças foram prejudicadas nas oportunidades de aprendizagem e na sua interação com professores e colegas.

“No pior dos casos, muitas crianças nem cursaram a pré-escola por conta dos desafios impostos pela crise sanitária. Priorizar a educação na primeira infância é fundamental para seu desenvolvimento integral”, afirma Esmeralda.

Ainda segundo Esmeralda, as informações do estudo, aliadas com iniciativas de avaliações diagnósticas próprias de cada rede de ensino, são fundamentais na formulação de estratégias que respondam aos desafios elencados e para trazer as crianças de volta à escola, com oportunidades de aprendizagem de qualidade, conforme estipula a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

“É indispensável que os gestores públicos elaborem ações robustas e coesas de busca ativa dessas crianças, ampliem o acesso à educação infantil com qualidade e realizem o monitoramento dessas iniciativas para que o direito constitucional à Educação seja efetivamente garantido”, alerta a pesquisadora na área de desenvolvimento humano.

Estado nutricional das crianças e outras violações

O estudo evidencia, ainda, que a transferência de renda emergencial durante a pandemia foi insuficiente para neutralizar os efeitos do fechamento das escolas – e da consequente falta de merenda escolar – no estado nutricional das crianças de 0 a 5 anos abaixo do peso, mesmo ajudando a atenuá-las.

“A experiência brasileira mostra que esses programas [de transferência de renda] são relevantes em diferentes perspectivas, inclusive no combate à insegurança alimentar. Recompor o poder de compra das famílias e sua capacidade de financiar necessidades básicas de moradia, alimentação, higiene e transporte é medida essencial que pode e deve ser articulada pelos diferentes entes federativos”, defende Marina Fragata Chicaro.

Durante a pandemia, houve, também, impactos na proteção de meninas e meninos contra as violências. Eles estão expressos na redução nas taxas de notificação de casos, que, segundo o estudo, era de 77 por 100 mil crianças por ano no período pré-pandêmico (2016-2019) e caiu para 60,4 a cada 100 mil crianças durante a pandemia (2020-2021) – uma retração da ordem de 23,7%.

“O estudo mostra que as crianças foram as vítimas ocultas da pandemia. Embora elas não tenham sido as mais afetadas diretamente pelo vírus, foram elas que sofreram as maiores consequências da crise provocada por ele. Essas violações de direitos impactaram, principalmente, crianças e famílias negras e indígenas. É fundamental priorizar os direitos das crianças e apoiar as famílias para reverter o cenário atual e dar a elas ferramentas para amortecer os impactos provocados pelo estresse tóxico e conseguir oferecer um ambiente de cuidado integral e integrado para as crianças”,
afirma Maíra Souza, Oficial de Primeira Infância do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil.

O estudo aponta também os reflexos da crise econômica na nutrição infantil durante a pandemia. De acordo com os dados, o número de crianças muito abaixo do peso aumentou 54,5% entre março de 2020 e novembro de 2021 (de 1,1% para 1,7%) – índice correspondente a cerca de 324 mil (4,3%) crianças de 0 a 5 anos incompletos.

A inflação atingiu especialmente a alimentação das famílias com crianças de até 6 anos, com um aumento de 63% da cesta de alimentos, enquanto a alta do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de alimentos e bebidas para a população em geral foi de 54% no mesmo período, entre março de 2020 e dezembro de 2021.

Segundo a Pesquisa de Orçamentos das Famílias 2017/2018, as categorias de produto com maior participação na despesa alimentar das famílias com crianças até 6 anos são leites e derivados (14,3% das despesas), panificados (13,2%), bebidas e infusões (11,5%) e carnes (11,4%).

“O levantamento mostra que a pandemia, as escolhas para lidar com ela e as desigualdades históricas vêm provocando efeitos profundos nas crianças, cujos impactos podem ser perpetuados no médio e longo prazo. Nós sabemos da importância dos primeiros anos de vida e de que a ação coordenada do poder público é chave para evitar que os impactos se aprofundem. Garantir o direito de cada criança a atingir o seu pleno potencial é uma agenda de direitos, prioritária também para o
desenvolvimento de todo o nosso País”, alerta a diretora de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, Marina Fragata Chicaro.

Mortalidade materna

De acordo com o estudo, o período pandêmico aumentou a mortalidade materna em 89,3% em todo o país, desde 2019 – 53,4% desses óbitos foram por infecção da covid. Além disso, mostra que as mulheres pretas apresentaram a maior Razão de Mortalidade Materna (RMM): 194,3 óbitos por 100 mil nascidos vivos em 2021 – 71 mortes a mais na comparação com as mulheres brancas, que foi de 123,2 mortes por 100 mil nascimentos. A RMM das mulheres indígenas foi de 140,2 óbitos por 100 mil nascidos vivos.

“A elevação da mortalidade materna é um problema de saúde pública grave. Cada vida perdida importa enormemente, cada mulher, cada mãe que integra este devastador dado. As consequências para a criança são inúmeras e podem ampliar a situação de vulnerabilidade social a que essas crianças estão expostas”, avalia Chiaro.

Segundo ela, os dados reforçam não só a necessidade de políticas públicas voltadas para a saúde da gestante, como expõem questões estruturais como racismo e as desigualdades históricas que acometem as mulheres negras no Brasil.

Desde 2015, as coberturas vacinais de rotina vinham caindo no Brasil e esse processo se acentuou nos últimos anos. A pesquisa mostra que os dez imunizantes específicos da primeira infância terminaram o ano de 2021 com taxa inferior à registrada em 2019.

A BCG, por exemplo, tinha uma cobertura de 86,6%. Em 2021, caiu para 68,6%. Já a poliomielite caiu de 84,1% para 69,4%. Em 30% dos municípios consultados no levantamento com os gestores, as famílias deixaram de levar as crianças de até 6 anos aos postos de saúde para tomar uma ou mais vacinas.

"Chamado para ação"

Realizada com o apoio da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e do Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas), a pesquisa abrange um portfólio de estudos com análise de dados secundários, em escala nacional, sobre saúde, educação e aspectos socioeconômicos e tem como principais bases de dados o Ministério da Saúde, o Ministério da Educação (MEC), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e a Pnad Contínua.

Além disso, levantamento de dados primários qualitativo e quantitativo foi efetuado entre fevereiro e abril de 2022 pela consultoria Plano CDE. A pesquisa aplicou questionários e entrevistas com gestores públicos e profissionais de secretarias de Saúde, Educação e Assistência Social em municípios das cinco regiões do Brasil para compreender os efeitos, desafios e oportunidades na atenção ofertada à primeira infância no período pandêmico.

No recorte de saúde, gestores de públicos de 100 municípios, em 17 estados, responderam ao questionário, além de 31 entrevistas em profundidade que incluíram também profissionais dos serviços; no socioeconômico, os questionários foram feitos com gestores de 485 cidades das 26 unidades da federação e 33 entrevistas em profundidade entre gestores e profissionais dos serviços de assistência social; já nos aspectos educacionais participaram 391 municípios, em 23 estados, com 37 entrevistas em profundidade com gestores e profissionais.

“Diferentes pesquisas apontam potenciais impactos negativos da pandemia na vida da população. A novidade desta publicação é a localização e visibilização da criança pequena nesse contexto. As evidências mostram a importância da primeira infância para o presente e futuro de cada indivíduo e o quanto experiências e adversidades vividas nessa fase da vida são cruciais”, avalia Chicaro, destacando que os dados e análises específicas das gestantes, crianças de 0 a 6 anos e suas famílias mostram esses efeitos e escancaram desigualdades de raça, nível socioeconômico e regionais na atenção à primeira infância.

Segundo ela, o levantamento permite que o gestor público tenha um diagnóstico que ajude a priorizar e planejar as políticas públicas com o compromisso de minimizar os danos, restabelecer direitos e prioridades para essa população. “De posse desse conhecimento, é possível enfrentar estrategicamente os desafios, a fim de superá-los com a urgência e a prioridade absoluta que a primeira infância requer e que está preconizada no nosso ordenamento legal. Um chamado para ação”.

Impactos da pandemia

Educação

  • As taxas brutas de matrículas (TBM) na educação infantil caíram entre 2019 e 2021, tanto na creche quanto na pré-escola. Nas creches, a retração foi de 2,8 pontos percentuais (p.p.), o que significou a diminuição de quase 338 mil matrículas no período;
  • A TBM na creche só não caiu no Norte do país, onde o patamar de matrículas é historicamente inferior à média nacional. Nas regiões Sul e Sudeste, observou-se uma redução superior a 4 p.p. de 2019 a 2021. Entre os estados, destaca-se a forte diminuição nas taxas no PR (4,9 p.p.), MS (4,8 p.p.), MG (4,6 p.p.), RS (4,3 p.p.) e RJ (4,2 p.p.);
  • Grande parte da mudança na TBM nas creches se deu na rede privada de ensino (mais de 280 mil matrículas perdidas). Aproximadamente 2,5 p.p. da queda total de 2,8 p.p. na TBM na creche foi consequência de redução de matrículas na rede privada;
  • Na pré-escola, a TBM ficou em 83,7% em 2021. De 2019 a 2021, a retração foi de 4,1 p.p., índice superior ao observado para as creches;
  • O Brasil foi um dos países do mundo em que as escolas ficaram fechadas por mais tempo, com uma média de 279,4 dias em 2020;
  • Gestores apontaram que as atividades remotas tiveram pouca aderência de crianças e suas famílias, principalmente as mais vulneráveis, seja pela dificuldade de conectividade, seja pela dificuldade de adaptação ao meio digital das propostas pedagógicas adequadas à faixa etária das crianças;
  • Na comparação do grupo das crianças que terminaram a pré-escola em 2020 com o grupo que terminou em 2019, em dois municípios brasileiros, a perda estimada, em termos de aprendizagem, foi de até seis meses em matemática e sete meses em linguagem.

Saúde

  • Entre 2019 e 2021 observou-se um aumento da Razão de Mortalidade Materna (RMM) em todo o país, que chegou a 113,6 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos em 2021 – uma alta de 89,3% desde 2019;
  • Em 2021, mais da metade dos óbitos maternos foi devido à infecção pela covid-19 (53,4%);
  • As mulheres pretas apresentaram a maior RMM observada na pesquisa: 194,3 óbitos por 100 mil nascidos vivos em 2021. 71 mortes a mais em relação às mulheres brancas, que foi de 123,2 óbitos a cada 100 mil nascidos vivos;
  • Em 2020-2021 o início do pré-natal apenas depois do primeiro trimestre de gravidez foi mais frequente entre as mulheres não brancas – pretas, amarelas, pardas e indígenas –, com 19,5%; para as mulheres brancas a taxa foi de 11,3%;
  • Mais de 80% das mulheres brancas fizeram sete ou mais consultas de pré-natal durante a gestação, percentual que desce à casa dos 65% para mulheres de outra cor/raça (2015-2021);
  • Em 2020-2021, os nascimentos fruto de gravidez na adolescência (mães com até 19 anos) foram muito menores em meninas brancas, na comparação com meninas de outra cor/raça – pretas, amarelas, pardas e indígenas (9,0% e 16,3%, respectivamente);
  • As dez vacinas específicas da primeira infância terminaram o ano de 2021 com cobertura inferior à registrada em 2019. A BCG, por exemplo, tinha cobertura de 86,6% em 2019. Em 2021, ela caiu para 68,6%. Já a vacinação contra a poliomielite foi de 84,1% para 69,4% no mesmo período.

Socioeconômico

  • A pandemia aumentou em 54,5% a proporção de crianças muito abaixo do peso entre março de 2020 e novembro de 2021 (de 1,1% para 1,7%);
  • No mesmo período, a proporção de crianças de 0 a 5 anos incompletos – aproximadamente 324 mil – abaixo do peso ou muito abaixo do peso foi de cerca de 4,3%;
  • Entre março de 2020 e dezembro de 2021, a inflação de alimentos e bebidas das famílias com crianças até 6 anos aumentou 63%, enquanto o aumento do IPCA de alimentos e bebidas para a população em geral no mesmo período foi de 54%;
  • No mesmo período, a cesta de consumo de alimentos e bebidas das famílias mais pobres aumentou, em média, 64,5%, enquanto a cesta de consumo das famílias mais ricas subiu 62%;
  • A taxa anual de notificação de violência contra as crianças era de 77 por 100 mil crianças por mês no período pré-pandemia (2016-2019); ela caiu para 60,4 a cada 100 mil crianças em 2020-2021;
  • Na percepção de 48% dos gestores que atuam na assistência social participantes da pesquisa, em 2022, com a retomada dos serviços, houve aumento na demanda por apoio para questões relacionadas aos diferentes tipos de violência doméstica e contra a criança.

 

Tags

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação