O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) divulgou a retificação dos gabaritos oficiais do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2020 e modificou duas questões, criticadas pelos candidatos do exame e classificadas como racistas.
Os padrões de respostas dos dois dias de prova foram divulgados na quarta-feira (27/1) juntamente aos cadernos. Em duas questões nas provas de linguagens, códigos e suas tecnologias, candidatos apontaram racismo estrutural na primeira versão do gabarito. Após acusações de racismo, o Inep corrigiu as questões em todos os cadernos nesta quinta (28/1).
Questão tratou a postura de uma mulher negra em não alisar o cabelo como imatura
Um dos itens estava na prova de língua estrangeira, opção inglês, que trouxe um trecho do livro Americanah, da feminista e escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. A questão trata de um diálogo entre duas mulheres negras: a cabeleireira Aisha e a cliente Ifemelu. A cabeleireira pergunta à cliente porque ela não alisa o cabelo, e Ifemelu responde: “Eu gosto do meu cabelo do jeito que Deus fez”.
Antes da retificação, o Inep havia colocado que os argumentos de Ifemelu para não alisar o cabelo eram uma postura de imaturidade. A resposta correta retificada apresenta argumentos que revelam uma postura de resistência ao padrão de beleza e à cultura de embranquecimento que transmite que todas as mulheres, para serem bonitas, devem alisar os cabelos.
Ainda na prova de linguagens, a questão 29, no caderno amarelo, apresentava que, ao digitar nomes comuns entre negros dos Estados Unidos no Google, as chances de os anúncios automáticos oferecerem checagem de antecedentes criminais pode aumentar 25%. “E pode piorar com a pergunta ‘detido?’ logo após a palavra procurada”, finalizou o texto motivador.
A resposta indicada pelo Inep era de que o texto motivador permitia o desnudamento da sociedade ao relacionar as tecnologias de informação e comunicação com a linguagem. Porém, tratava-se de uma relação de preconceito.
Presidente da Ubes viveu na pele situação da questão do Enem
Rozana Barroso, 21 anos, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), resume como “um grande absurdo” as questões do caderno de linguagens. “Considerar uma resposta correta chamar uma mulher de imatura por assumir os seus traços é o puro racismo”, afirma.
Além disso, Rozana compartilhou que está passando pela segunda transição capilar, processo de voltar ao cabelo natural e não usar mais produtos químicos. A presidente da Ubes também viveu a experiência de a cabeleireira perguntar se ela não queria alisar o cabelo, como no romance Americanah. Mas, no caso de Rozana, a profissional fez o procedimento sem o consentimento dela.
“Eu fui cortar o cabelo e a moça achou que ela podia e tinha autorização para aplicar um produto que alterou meus fios sem o meu consentimento. Quando cheguei a casa, percebi que estavam alisados. Hoje, estou na segunda transição exatamente porque essas situações, como na questão do Enemn acontecem. E é por isso que a gente critica”, pontua. “As pessoas acham que têm liberdade de invadir seu espaço, cabelo e traços.”
Segundo Rozana, a Ubes espera que a situação seja averiguada e que a questão seja anulada, caso o Inep volte atrás e dê a resposta da postura imatura como correta. “São duas questões que, de fato, em um momento tão difícil, representam uma violência principalmente à juventude negra”, diz. Confira post de Rozana sobre o assunto:
De acordo com o @inep_oficial uma mulher negra que se recusa a alisar o cabelo é imatura. Essa é a resposta considerada correta em uma questão do Enem, que eu com orgulho “errei”. É hora de ir pra cima e exigir a anulação dessa questão. O racismo não passará!
— Rozana Barroso (@RozanaBarroso) January 28, 2021
Nas redes sociais, inscritos no exame se manifestam e criticam as questões. Confira:
E esse gabarito do Enem Inep que isso
— Manoel viado bissexual (@mimsermanoel) January 27, 2021
Imaturidade? LINGUAGEM??? pic.twitter.com/bqTPp1Jv0g
Tava vendo agora que o Enem atualizou gabarito oficial porque 2 questões estavam realmente erradas, as respostas que eles indicaram como certa eram racistas sim! #Enem2020
— Larissa Santana (@Lsantana29) January 28, 2021
A Ubes se manifestou pelas redes sociais e postou no Twitter da entidade que “o racismo não pode ser tolerado”. Além disso, pede que o Inep não só altere o gabarito, como também se manifeste: “Somente alterar o gabarito não é retratação”.
Essa é a outra questão "corrigida" pelo Inep. A resposta da 43 dizia que o Google associava nomes de pessoas negras a fichas criminais por causa da "linguagem", não do "preconceito". O racismo não pode ser tolerado. Somente alterar o gabarito não é retratação. pic.twitter.com/3NGH48kIDB
— União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (@ubesoficial) January 28, 2021
Não alisar o cabelo não é imaturidade e sim RESISTÊNCIA ao padrão de beleza e a cultura de embraqueciamento. A questão precisa ser anulada, porque a resposta indicada pelo MEC é errada e preconceituosa. É um absurdo o racismo e machismo do Bolsonaro serem reforçados no Enem 2020. pic.twitter.com/0dngyE7Xv7
— União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (@ubesoficial) January 28, 2021
Nas redes sociais, a União Nacional dos Estudantes (UNE) criticou os erros e as questões racistas e também pediu retratação do Ministério da Educação (MEC) e do Inep. “Um descaso total com os estudantes e as lutas sociais, exigimos respostas urgente!”, argumentou a UNE.
Gabaritos foram retificados
O Inep, após revisão nos gabaritos da versão impressa do Enem 2020, publicou as versões corrigidas no site da autarquia. Segundo o Instituto, “foi identificada uma inconsistência no material''.
“A autarquia verificou que uma modificação feita no gabarito após o retorno das provas para o Inep não foi salva no banco de dados. Em função disso, a área técnica providenciou uma revisão no material e o instituto já disponibilizou as versões corrigidas no seu portal”, afirmou a assessoria de imprensa do Inep em nota.
*Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa