Estágio

CNJ garante 30% das vagas de estágio para negros no Judiciário

A resolução foi aprovada por unanimidade e as novas regras devem ser acatadas por todos os órgãos do Poder Judiciário. Para os processos seletivos com três ou mais vagas, é exigido que 30% sejam para pretos e pardos

Mateus Salomão*
postado em 25/09/2020 21:10 / atualizado em 25/09/2020 21:59
CNJ define que pelo menos 30% das vagas em processos seletivos de estagiários no Poder Judiciário devem ser reservados para negros -  (crédito:  Christina @ wocintechchat.com / Unsplash)
CNJ define que pelo menos 30% das vagas em processos seletivos de estagiários no Poder Judiciário devem ser reservados para negros - (crédito: Christina @ wocintechchat.com / Unsplash)

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definiu nesta sexta-feira (25) que pelo menos 30% das vagas em processos seletivos de estagiários no Poder Judiciário devem ser reservados para negros. Todos os outros conselheiros presentes foram unânimes em seguir o voto do relator Luiz Fux, presidente do CNJ e do Supremo Tribunal de Federal (STF). Na prática, a resolução regulamenta a implantação de cotas raciais em programas de estágio dos órgãos do Poder Judiciário de todo o país.


A regra vale somente para processos seletivos que oferecem acima de três vagas. Caso a cota reservada para negros não seja preenchida, automaticamente será revertida em vagas de ampla concorrência. A resolução também define que essa regra vale até 9 de junho de 2024, quando termina a vigência da lei n° 12.990/2014, que trata da reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos a negros.


“É premente que a Administração Pública empreenda mecanismos institucionais que viabilizem a minimização e/ou eliminação das distorções étnicas da sociedade brasileira mediante a efetiva aplicação material, em última análise, do princípio da igualdade”, afirma o voto do relator Luiz Fux. “É salutar que, em sincronia com o Poder Executivo Federal (Decreto nº 9.427/2018), haja a reserva aos negros de 30% (trinta por cento) das vagas de estágio em órgãos do Poder Judiciário nacional.”


Primeiros passos


O estudante do terceiro semestre do curso de direito da Universidade de Brasília (UnB) Gustavo Cardoso de Carvalho considera positiva a resolução do CNJ. Para ele, o estabelecimento dessas cotas consiste nos primeiros passos para, de certa forma, diminuir a disparidade racial presente no sistema judiciário. “Analisando a carreira de magistratura no Brasil, percebe-se um grande ‘limitador’ racial na ocupação dos mais diversos cargos judiciários”, pondera o estudante.

O estudante de direito Gustavo Carvalho considera essas cotas os primeiros passos para diminuir a disparidade racial presente no sistema judiciário
O estudante de direito Gustavo Carvalho considera essas cotas os primeiros passos para diminuir a disparidade racial presente no sistema judiciário (foto: Arquivo Pessoal)

“Ao meu ver foi algo benéfico, pois, além de criar oportunidades, essa é mais umas das medidas para reparação histórica da exclusão da população negra do mercado de trabalho”, ressalta. Ele considera que, após o término da vigência dessa regra, será necessário analisar se a decisão deve ser estendida por mais tempo. “Deve-se analisar quais os impacto tidos após (a validade) dessa norma, verificando assim se ainda existe a necessidade (de estendê-la) para obter o resultado que era previsto.”


Entrar no meio jurídico é tarefa difícil


“Os estudantes negros, geralmente, precisam estudar em dobro e ainda assim alcançam posições aquém daquelas de um estudante branco. Além disso, tem a questão de que, se uma pessoa é de fora da comunidade jurídica - muitas vezes o primeiro da família a entrar na universidade pública, por exemplo - se inserir nesse meio é uma tarefa difícil”, destaca o estudante do terceiro semestre de direito da UnB Gustavo Cantanhêde dos Reis.

O estudante de direito Gustavo Cantanhêde dos Reis considera que entrar no meio jurídico é tarefa difícil
O estudante de direito Gustavo Cantanhêde dos Reis considera que entrar no meio jurídico é tarefa difícil (foto: Arquivo Pessoal)

Ele considera que, embora tenha sido uma decisão simples e de alcance limitado, ela carrega um valor simbólico de reconhecimento de que a desigualdade racial no Brasil merece atenção do Estado. Gustavo considera que o fato de englobar estagiários talvez funcione como brecha para que muitos consigam sua primeira oportunidade no contexto judiciário, tornando-o mais diverso. “Medidas como essa ajudam a dar um ponto de partida mais próximo ao daqueles mais favorecidos racial ou economicamente.”


“De toda forma, essas medidas afirmativas não deixam de ser um paliativo. Problemas sociais complexos devem ter uma abordagem multidirecionada. Apenas cotas não resolvem o problema. É preciso investir no ensino básico, dar condições para que essas pessoas não precisem optar entre o estudo e o trabalho para sua subsistência, evitando a evasão”, alerta o estudante


Politica antiga, mas não para negros


A coordenadora do Pilar de Empregabilidade do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), Aline Nascimento, lembra que a lei de cotas para a população negra é política recente no país, criada somente em 2012. No entanto, ela destaca que, em 1968, foi estabelecida lei que reservava vagas para filhos de fazendeiros em universidades. “A política de reserva de vagas é algo recorrente na estruturação política do país, o que a gente está tendo agora é um olhar para a possibilidade de construir soluções para a reserva de vagas para a população negra”.

Aline Nascimento, lembra que a lei de cotas para a população negra é política recente no país, criada somente em 2012
Aline Nascimento, lembra que a lei de cotas para a população negra é política recente no país, criada somente em 2012 (foto: Arquivo Pessoal)

Aline lembra que medidas como a resolução do CNJ são importantes porque, apesar de consistirem na maior parte da metade da população, os negros não são os mais empregados. Além disso, a coordenadora destaca a ação do racismo institucional na sub alocação de pessoas negras no mercado de trabalho, quando profissionais precisam ocupar vagas que não consistem com suas formações. “Não é sobre competência, é sobre lugares e oportunidades”, ressalta


“Quando olhamos para o contexto do percentual de desembargadores e juízes do Supremo Tribunal Federal, vemos um mundo de ausências de pessoas negras. Quando olhamos para a política de reserva de vagas para as pessoas negras em um determinado espaço, sobretudo espaços de poder como é o judiciário, estamos diante da construção de um mundo de oportunidades”, pondera.

“Para além da garantia de reserva de vagas têm formação o suficiente? As pessoas conseguiram se manter nos estágios? É importante ter a análise de desempenho e ter acompanhamento. Isso não muda para profissionais negros porque está se falando de política de reservas. A gente só está falando da possibilidade de garantia de entrada para que, a partir daí, a gente consiga também repensar todo o processo”, propõe Aline.

 

*Estagiário sob a supervisão da editora Ana Sá

 

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