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Mais trabalho, mais sacrifícios: os efeitos da pandemia no trabalhador

A quantidade de horas extras feitas pelos trabalhadores cresceu, assim como a abertura dos funcionários de se sacrificar para manter o emprego

Vitória Silva*
postado em 30/08/2020 14:04 / atualizado em 30/08/2020 14:27
Pesquisa com 43 mil trabalhadores em todo o mundo mostra que a flexibilidade para o home office cresce, apesar de existir pressão por retorno ao escritório físico. Também aumentou a quantidade de horas extras trabalhadas. Mesmo assim, o brasileiro não perde o otimismo: o nível de positividade manteve-se estável antes e depois da pandemia -  (crédito: Maurenilson Freire/CB/D.A Press)
Pesquisa com 43 mil trabalhadores em todo o mundo mostra que a flexibilidade para o home office cresce, apesar de existir pressão por retorno ao escritório físico. Também aumentou a quantidade de horas extras trabalhadas. Mesmo assim, o brasileiro não perde o otimismo: o nível de positividade manteve-se estável antes e depois da pandemia - (crédito: Maurenilson Freire/CB/D.A Press)

A pandemia do novo coronavírus afastou trabalhadores do mundo inteiro das mesas de escritório e os obrigou a lidar com uma nova dinâmica profissional, longe da empresa, dos colegas e dos equipamentos de costume. Claro que o home office não é possível para todas as categorias, mas, para diversas, a crise sanitária forçou a primeira experiência com o modelo. O quadro pandêmico modificou em larga escala o mercado de trabalho mundial, como mostram dados da pesquisa do ADP Research Institute, feita com pessoas de quatro continentes.

Com tantas modificações, os desejos e a visão dos trabalhadores antes e depois da pandemia também se transformaram. Passaram por mutações as prioridades e as expectativas dos colaboradores mundo afora. No Brasil, o total de trabalhadores que atuam numa empresa que tem flexibilidade para o home office passou de 27%, em janeiro, para 50%, em maio. Em todos os continentes, a quantidade de horas extras subiu. Também aumentou, em geral, a abertura das pessoas para aceitar um trabalho freelancer.

Sacrifícios

Antes da pandemia, os brasileiros responderam que trabalhavam, em média, 4,3 horas sem remuneração por semana. Seria o período que costumavam ficar a mais no emprego sem compensação financeira. Após a pandemia, a quantidade de horas extra sem pagamento subiu para 5,3 por semana.

Mariane Guerra, vice-presidente de RH da ADP na América Latina
Mariane Guerra, vice-presidente de RH da ADP na América Latina (foto: ADP/Divulgação)

Todas as regiões do mundo analisadas apresentaram aumento da carga de trabalho após a crise sanitária, sendo a América do Norte o continente onde o crescimento foi mais acentuado, passando de 4,1 para 7,1 horas. Além de passarem a trabalhar mais, as pessoas tornaram-se mais dispostas a fazer sacrifícios para manter o emprego. Cerca de 46% dos brasileiros aceitariam redução de rendimentos e 18% concordariam com adiamento do salário.

Além disso, 9% considerariam a rescisão aceitável em meio à crise; e outros 26% não achariam nenhum sacrifício apropriado nem aceitável. Os trabalhadores indianos são os que mais concordariam uma redução de seus rendimentos se isso significasse a manutenção do emprego (51%), seguidos pelos chineses (34%).

Otimismo

Os números mostram que, apesar da necessidade repentina de adaptação à nova forma de trabalhar, 84% dos trabalhadores sentem-se otimistas quanto ao ambiente de trabalho nos próximos cinco anos. Na primeira etapa do estudo, antes da crise de covid-19, esse número era ainda maior, totalizando 86% dos trabalhadores mundiais.

Reprodução
Reprodução (foto: Reprodução)

Quando observados os dados do Brasil, o índice fica em 89%, levemente acima da média das seis regiões comparadas. Sendo que o nível de otimismo manteve-se o mesmo antes e após a crise de covid-19. “Mesmo com a pandemia, as pessoas ainda têm uma visão otimista com relação ao mercado de trabalho, ou sobre o que vai acontecer com seu emprego nos próximos cinco anos”, afirma Mariane Guerra, vice-presidente de Recursos Humanos da ADP na América Latina.

Essa visão positiva dos trabalhadores brasileiros é um diferencial, pois não apareceu em vários outros grupos. Em países como China, Índia e Espanha, houve queda do otimismo após a covid-19. Os brasileiros também são os que menos esperam que as funções desempenhadas por eles possam deixar de existir no futuro.

Para 75% dos entrevistados no Brasil, os cargos que exercem, atualmente, subsistirão até 2025. Assim como os trabalhadores brasileiros, a maioria dos europeus, também, não acredita na extinção de suas funções neste período, com apenas 17% dos entrevistados apostando nesta hipótese na primeira edição e 16%, na segunda.

Comparações

O estudo é composto por duas etapas: a primeira, feita entre novembro e dezembro de 2019; e a segunda, feita em maio. Os comparativos mostram que as respostas dos funcionários variaram muito entre os dois momentos. Foram ouvidos, para a primeira etapa do estudo, 32 mil profissionais, em 17 países, incluindo o Brasil. Já na segunda, 11 mil trabalhadores de seis nações (Espanha, Reino Unido, Estados Unidos, China, Índia e Brasil) participaram da apuração.

Os questionamentos foram feitos tanto a empregados fixos, quanto a freelancers e prestadores de serviços. “É uma amostra bem variada, que reflete o mercado de trabalho como um todo”, explica Mariane Guerra. Entre as principais modificações que este cenário causou, segundo a executiva, estão aquelas relacionadas às habilidades valorizadas no mercado e à automação, que ocorre em razão das novas tecnologias do mercado.

"No Brasil, mesmo com a pandemia, as pessoas ainda têm uma visão otimista com relação ao mercado de trabalho, ou sobre o que vai acontecer com seu emprego nos próximos cinco anos”
Mariane Guerra, vice-presidente de RH da ADP na América Latina


46%
Total de brasileiros que aceitaria redução de salário para a manutenção do emprego

9%
Percentual de brasileiros que aceitaria adiamento de salário para a manutenção do emprego


Adaptação ao formato remoto

Luanna Ferreira, servidora pública
Luanna Ferreira, servidora pública (foto: Arquivo Pessoal)

O estudo da ADP Research aponta que cerca de 70% dos entrevistados pelo estudo tiveram boa adaptação ao trabalho remoto. No entanto, pelo menos 30% dos trabalhadores ainda desejam voltar para o escritório fisicamente, seja por necessidades pessoais e questões emocionais seja, por aspectos técnicos. “Essa adaptação depende do estilo de vida e das condições pessoais”, comenta Mariane Guerra, vice-presidente de RH da ADP.

“Existe uma mudança na rotina de trabalho e, às vezes, as pessoas levam um tempo para se organizarem no novo ambiente. É natural, no começo, confundir as rotinas (pessoal e laboral), mas, ao longo do tempo, vão se adaptando”, reflete Mariane . A executiva, que está com a equipe em home office desde o começo da pandemia, relata que, no início, houve maior desorganização entre os colaboradores, mas, hoje, todos estão bem adaptados.

Luanna Ferreira, 38 anos, servidora pública no Distrito Federal, está desde o começo da pandemia, em março, trabalhando de maneira remota e percebeu a dificuldade de separar a rotina pessoal da profissional. Ela elenca pontos positivos do trabalho a distância. “No formato remoto, eu ganho tempo em relação a não ter deslocamento, é muito bom para a minha qualidade de vida e também para o órgão, que não gasta com o transporte”, relata.

Além disso, a técnica em assuntos educacionais na Universidade de Brasília (UnB) destaca que, em casa, é possível desenvolver um ritmo de trabalho mais individual e ajustar a rotina à sua maneira. Embora ofereça muitas vantagens, trabalhar dentro de casa também pode ser um desafio. Uma das maiores dificuldades para Luanna é conciliar a demanda do trabalho com a familiar, principalmente para ela, que tem um filho de 4 anos.

“Uma coisa é sair de casa e chegar ao trabalho e ter as demandas só do trabalho. Quando você está em casa, tudo acontece ao mesmo tempo”, relata. Graduada em letras e especialista em gestão universitária, Luanna afirma que as dúvidas que antes eram tiradas em pouco tempo no escritório, com o trabalho remoto, demoram mais do que o normal para serem solucionadas.

Após a pandemia, ela espera que haja maior flexibilidade no ambiente de trabalho para que exista a possibilidade de alternar o expediente remoto com o tempo no escritório. Ainda enfrentando o quadro pandêmico, ela espera que os empregadores pensem em mais formas de trabalho remoto para serviços não essenciais, para que o índice de contaminação por covid-19 seja reduzido.


Trabalho freelancer em alta

A pesquisa da ADP Research apurou, ainda, qual a forma de trabalho preferida pelos entrevistados. Antes da crise do novo coronavírus, apenas 18% dos brasileiros responderam que preferiam o regime freelancer ou autônomo. Apesar de um leve acréscimo, chegando a 20% pós covid-19, a porcentagem permanece baixa. Na Europa, o número também apresentou leve incremento nas duas fases do estudo, passando de 13% para 18%.

Reprodução
Reprodução (foto: Reprodução)

Embora as funções permanentes continuem sendo as preferidas antes e depois da pandemia, os estudos revelam que o apelo do trabalho freelancer segue em alta. Antes, 15% de todos os trabalhadores (regulares e freelancers) disseram que escolheriam o trabalho autônomo em vez de uma posição permanente caso ambas as opções estivessem disponíveis. Na segunda edição da pesquisa, esse índice subiu para 18%.

A vice-presidente dos recursos humanos da ADP na América Latina, Mariane Guerra, explica que o grande atrativo pelo trabalho independente se deve à preferência de poder trabalhar onde e quando quiser. “As pessoas estão querendo fazer o que gostam, e quando podem. Escolher que projetos você quer fazer e não estar amarrado a um empregador. Esses são os principais fatores que os atraem para o modo freelancer.”


Flexibilidade aumentou

O percentual de empresas que implementaram uma política de trabalho mais flexível (não se limitando ao formato presencial o tempo todo, passando totalmente para o home office ou, pelo menos, mesclando períodos de atividades remotas e físicas) após a pandemia aumentou em comparação com a primeira fase do estudo realizado pela ADP Research. Mais da metade dos entrevistados (44%) afirma que os empregadores, agora, oferecem flexibilização na forma de trabalho, em comparação com apenas 24% do resultado anterior.

Ao passo que a proporção de participantes que dizem que a gerência sênior permite essa forma de trabalho saltou de 19% para 28%. No Brasil, a porcentagem de trabalhadores que afirmam que as empresas onde atuam contam com uma política oficial que permite trabalho flexível quase dobrou em comparação com a primeira fase do estudo, passando de 27% dos entrevistados para 50%. Ainda assim, de acordo com Mariane Guerra, vice-presidente de RH da ADP Research, muitas empresas demonstram certa resistência quanto à flexibilização do trabalho.

“Apesar de 44% terem migrado para o trabalho flexível, mais da metade dos trabalhadores afirmou que se sentiu, em algum momento durante a pandemia, pressionados a voltar para o escritório, embora a recomendação oficial fosse a de manter os trabalhadores não essenciais em casa. A flexibilização ainda é um grande tabu nas empresas.”

Em contrapartida, de acordo com a vice-presidente de RH da ADP, muitas companhias que experimentaram o trabalho remoto durante a pandemia adotarão essa forma no futuro pós-covid-19. No entanto, não se pode tirar conclusões a longo prazo. “Ainda é cedo para analisar se estamos diante de um cenário que permanecerá após este período”, diz.

Entre os entrevistados que trabalham numa área em que o governo recomendou ou exigiu que aqueles que exercem atividades não essenciais ficassem em casa o máximo possível, houve parcela significativa que sofreu pressões para continuar trabalhando presencialmente. Entre os brasileiros, 30% afirmaram sentir alguma pressão no início, mas, agora, não mais. Já outros 17% pontuaram que, ainda neste momento, são pressionados pelo patrão.


Mudança de emprego

Victor Ferreira, designer
Victor Ferreira, designer (foto: Arquivo Pessoal)

Existe uma taxa relevante de trabalhadores que desejam manter o emprego atual no futuro. A alta do desemprego, o medo da instabilidade provocada pela pandemia do novo coravírus e o cenário de incerteza podem explicar certo receio de mudar de empresa. No entanto, parte dos funcionários segue com planos para recolocação.

“Se, por um lado, a gente vê uma explosão de trabalhadores migrando para uma modalidade de emprego diferente; por outro, existe uma grande parte de trabalhadores no mundo que planeja ficar onde está”, explica Mariane Guerra, vice-presidente de RH Research e graduada em pedagogia e pós-graduada em administração de recursos humanos.

No caso do designer gráfico Victor Ferreira, 22 anos, o trabalho remoto o ajudou a enxergar que deseja uma mudança. Para ele, a maior dificuldade do home office no momento tem a ver com a conectividade. “O grande problema é a conexão, via aplicativo, com o computador da empresa. Caso eles tenham problema com a internet, perco o meu acesso”, afirma.

Contratempos como esse tornaram-se parte da rotina de muitos teletrabalhadores. Outros obstáculos que Victor percebe dizem respeito a falhas de comunicação. “Algumas coisas que eu saberia de imediato se estivesse lá, sou avisado depois de ter feito o trabalho”, diz.

Apesar dos desafios, Victor diz que conheceu um novo jeito de trabalhar com o home office, que permitiu mais autonomia, além de ter descoberto novas oportunidades. “Depois que passei a trabalhar remotamente, vi a possibilidade de começar meu próprio negócio, na minha área. Então, no pós-pandemia quero estar trabalhando para mim”, planeja.


"Depois que passei a trabalhar remotamente, vi a possibilidade de começar meu próprio negócio, na minha área. Então, no
pós-pandemia quero estar trabalhando para mim”
Victor Ferreira, designer

 

* Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

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